sábado, março 29, 2014

O senhor Flores hoje não para um segundo



O senhor Flores hoje não para um segundo. Anda de um lado para o outro, rói a restante quitina dos dedos, bate com eles na mesa, levanta-se, senta-se, vira e revira, para regressar onde está, sempre que a mente dele regressa de onde veio. Parece que cada ideia tem o seu lugar específico, na casa onde o Sr. Flores reside.
As preocupações estão arrumadas em prateleiras na cozinha, onde o tempo não passa permitido assim estudar cada lata, cada garrafa, os garfos, as colheres, os pratos fundos e os pratos rasos, todo um conjunto de utensílios que refletem as ferramentas para os vários nós da sua vida.
Já os sonhos, esses exigem um breve sentar, junto do conforto do cadeirão da sala. A visão organizada da organização desta divisão permite-lhe perceber a ordem das ideias que o levarão ao sucesso da sua empresa, seja ela qual for.
Os juízos de valor são feitos no seu quarto. De preferência com a porta fechada. Apesar de viver sozinho, o Senhor Flores precisa de mais esta reclusão. Medita enquanto julga, com a fronte encostada à janela e à vista repetida dos carros a passar. Ainda se vê um parque infantil, mas em dias de juízos de valor, de julgamentos de pessoas, o tribunal das relações intropessoais exige que a porta do quarto esteja fechada, mesmo que a rua possa vir a ser um desvio da concentração, com todos aqueles motores a rodar e a urrar, e que o parque infantil se considere um detalhe a eliminar dos arquivos do processo. Aqui a ideia é que a ideia não saia por onde entrou, mas respire um pouco do que a liberdade traz, caso se confirme um parecer semelhante.
Existem muitas mais variações na mente deste homem. Muitas que residem fora de casa, isto é apenas um exemplo. Existe a  rotina dos andares descidos para as desiluzões, as riscas brancas das passadeiras para os ensinamentos, os caminhos do capuchinho vermelho quanda pensa numa resposta a dar a alguém, o corta-mato do lobo mau quando a notícia é menos alegre. A rua das mentiras, a praça do questionário, tudo tem um lugar, tudo ao seu lugar.
Hoje ele não sossega. Ideias que não consegue arquivar.  Não possuem espaço próprio, não são catalogáveis. E isto ele não percebe. Não entende. Esta casa não as consegue arquivar. A rua também não. Onde as ponho? Onde as arrumo? Como as resolvo? Por onde as encaixo. Entre o quê e os quês? Devolvo-as? Não. Não se pode devolver ideias com esta importância. Jogo-as num poço sem fundo e tapo a entrada? Também não quero. Mais cedo ou mais tarde tudo volta.
Sejamos honestos por um momento. Estás a tentar enganar quem Senhor Flores? Nós é que não enganas de certeza. Nós? Nós!? As tuas ideias? As tuas fantasias, os teus receios? Nós, que te levamos em qualquer lado do mundo. Nós, no teu profundo, que te arrastamos até à cozinha, depois á sala, de seguida ao quarto, e de  novo á cozinha, quantas vezes quisermos Senhor Flores... Tu sabes o que queremos. Queremos o que achas que precisas. Se não o sentes ainda tratamos de to meter na ponta da língua...
Precisas de novos lugares, lugares que a teu lar não te providencia mais.
Senhor Flores, as tuas ideias precisam de uma casa nova.

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