sexta-feira, setembro 29, 2006

Realidades Alternativas - Parte VI - Dejá Vu

Estava no avião com destino de regresso a Portugal quando finalmente aconteceu aquilo que tinha desejado com tanta força, após a minha primeira tentativa, tinham passados 20 anos. Voltei ao início da minha vida. Foi ao som do Michael Jackson que aconteceu. Tantas e tantas vezes tinha pedido para começar de novo, regressar ao período mais feliz da minha existência, à minha infância, e recomeçar a partir daí, sabendo tudo aquilo que sei hoje. Fechei os olhos e com a ajuda dos meus auscultadores tentei regressar, dentro do avião, aos meus velhos sentimentos e sensações infantis, ao som de I Wanna Rock with You. Imaginei de novo as pessoas, os amigos, familiares que tanta falta me fazem, quis mais uma vez que tudo voltasse atrás, tudo menos a minha alma, as minhas memórias. Tentei recordar os cheiros, as cores, a felicidade do momento, tudo o que a minha memória me permitia. Concentrei todas as minhas tentativas num único momento e esperei sem respirar. Tantas tentativas iguais a estas tinham-se repetido em vão ao longo de toda a minha vida. Tentei simetrizar este momento com aquele mais próximo possível nas minhas recordações tão longe, o seu homónimo no passado, por mais fino que seja. Lembrei-me de uma outra viagem, mesmo que a origem ou o destino não fossem mais do que vagas suposições. Lembrei-me de uma pasta presa ao pescoço, uma hospedeira que não era mais do que uma camisa, um cachecol e uma saia azul, de mão dada comigo, a caminho da saída. Imaginei o reencontro com a minha família, os risos e os abraços. Pensei, esforcei todo o meu corpo, mais uma tentativa, desta vez com todo o poder das minhas recordações…
Esperei não sei quanto tempo. Por segundos ou minutos, não sei. A canção passava e transportava-me ao passado. E depois… nada. Vazio. Silêncio.
Abri os olhos e olhei à minha volta. Por momentos descobri que tinha estado realmente lá. No meu mais profundo recanto de amor, tinha estado lá. Senti-me feliz e muito triste ao mesmo tempo. Tinha sido tudo tão breve, e mais uma vez não teria resultado. Ou teria?
Olhei com atenção à minha volta. Senti algo pendurado ao meu peito. Vi tudo á minha volta como se uma imagem sépia da modernização. Senti-me leve, respirava com desenvoltura, todo o meu ser era agora muito ágil. Senti medo. Olhei para as minhas mãos, eram finas e…
Obrigado! Pensei quase a explodir em lágrimas! Obrigado!

terça-feira, setembro 12, 2006

Desliguei a Televisão

Encostei-me ás emissões de rádio. Deixei-me embalar pelas conversas, anúncios e canções. Ouvi os comentários, as críticas, os ensaios, os poemas, fugi dos anglicismos e americanismos que optam por nos lavarem o cérebro até à exaustão, com temas débeis de sentido, vazios, sem alma. Preferi as divagações complicadas dos nossos comentadores, as frases ensaiadas, cheias de analogias e sentidos turvos de duplicidade, o pavoneio dos líderes sem razão, os queixumes dos desgraçados, as lutas sem fim, as opiniões, os insultos, que definem verdadeiramente as cores das nossas vidas…
Muitas vezes revejo-me nos ódios de estimação, nos orgulhos que partilho com os outros, que falam por mim, me apoiam e me substituem na voz, na alma e no saber.
Desliguei a televisão porque senti que estava a precisar. O magnetismo é demasiado, e tentar desviar o olhar torna-se numa ansiedade sem sentido. Qualquer som obriga-nos a exigir a respectiva imagem, e quanto mais alto melhor. Em pouco tempo, de nada tornei-me num escravo televisivo sem necessidade. Na rádio, tal como num livro o esforço é maior, mas também o é a recompensa. A imaginação torna tudo muito mais aguerrido, mais solto, articulado, bivalente. Imagino alguém que os meus olhos nunca presenciaram, pela minha perspectiva, do meu ponto de vista. Escolho o tamanho, os traços, a importância, tomo as minhas próprias decisões. Recebo, mastigo e rejeito tudo aquilo que não me interessa. Sou quem sou e quem quero ser sem ser desviado para aquilo que alguém decidiu servir-me…

segunda-feira, setembro 11, 2006

Chico Buarque - Construção

Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido
Subiu a construção como se fosse máquina
Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima
Sentou pra descansar como se fosse sábado
Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música
E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acbou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego

Amou daquela vez como se fosse o último
Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego
Sentou pra descansar como se fosse um príncipe
Comeu feijão com arroz como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo
E tropeçou no céu como se ouvisse música
E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina
Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado


Chico Buarque : Construção
Letra e música: Chico Buarque
In: 1971
Nivaldo