sábado, março 29, 2014

Nope.

As teclas desfilam em silêncio, já a vibração faz-se ouvir até ao fundo da sala. Nas mesas do bar, quem ouve o que sai dos meus dedos já não respira. Muitos deixaram o pensamento levantar voo e derivar por aí. Os conhecedores, críticos e outros pseudo pensadores do panorama musical, dos mais cor-de-rosa, passando pelos céticos e acabando naqueles cuja função é fazer-me afundar com as suas opiniões versus impressões, todos esses já entregaram, que é como quem diz, a alma ao criador. Hoje o criador sou eu, criador de notas e de cores no coração de todas estas almas. O fumo que enche a sala ofusca os olhos dos outros, os embasbacados, os opiniadores, os que decidem o que é bom e o que não presta, por todos nós, todos eles, que não vêm mais do que aquilo que lhes mandaram ver, esses que já estão iludidos dos meus próprios olhos, por este fumo todo, de cigarro e de outras companhias exóticas. Se eles soubessem que nem sequer estou cá...
As teclas reorganizam-se por si. Ajustam-se, os volumes deslizando ferventemente uns contra os outros, os silêncios gelando-lhes o sangue, mais um crescendo, mais uma sequência vertiginando em espiral, mais um sufoco. Alguém grita, alguém sente falta de ar, alguém respira a êxtase do amor... Se eles sonhassem que nem sequer estou cá...
Os meus dedos conhecem todos os cantos e recantos do mapa axadrezado deste piano, que piso noite após noite, nesta sala, neste bar, apinhado pelos meus movimentos, feliz a administração, que me compõe os poucos bolsos que consigo satisfazer, e que irei rebentar, mais tarde, neste mesmo bar, na pura desilusão de umas belas de umas garrafas, uns cigarros e companhias exóticas. Nem sequer estou lá, quanto mais cá.
Os olhares sinuosos de algumas damas em desespero de um esgar, meu. Umas pernas descruzadas no momento em que mudo de posição, numa vã tentativa de descruzar o meu próprio limbo, um sinal encorajador com a cabeça inclinada, lábios salientes, olhos penetrantes, até mesmo uns convites detalhados após o termo do meu exercício. Mas nada me move, nada me altera, nada me mexe. Como já tinha dito, hoje não estou cá.
Já chega. Faço silêncio. Assustam-se dele. Quem se movia, desistiu. Quem respirava cortou o ar da alma. Dá-se uma pausa. Um compasso. Estamos de volta a terra.
Levanto-me e dirijo-me, como todos os dias, ao meu lugar encantado, para mais umas garrafas, uns cigarros, ou outras companhias exóticas.
- Hoje tiveste fabuloso! FA - BU - LO - SO !!!!!!
Tem graça. Hoje nem sequer estou cá.

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