terça-feira, agosto 29, 2006

Divagar se vai a qualquer lugar

Olhava as pessoas sem as ver. Era de manhã e ainda não tinha conseguido passar do estado de hipnose que o leva para o trabalho, dia após dia. De casa para a estação, da estação para o comboio, depois o autocarro e finalmente a caminhada final para o posto de trabalho, na recepção da empresa jornalística. Iria ter de cumprimentar primeiro a senhora da limpeza que lhe abriria a porta, ao que se seguisse os funcionários que fossem aparecendo assim como aqueles que já lá estavam, seguindo-se os patrões conforme fossem aparecendo, e finalmente os utentes, curiosos e outros demais que se apresentassem ali. Tudo isto sempre em velocidade cruzeiro, até que por fim lhe fosse dada qualquer ordem extra a cumprir. Aí iria optar pela pose do trabalhador dedicado, eficiente e enérgico, adjectivos esses cujo grau de importância seria proporcional ao estatuto da entidade requerente em questão. É preciso dizer que tanto mais importante fosse a posição da referida entidade, mais fácil seria também a comunicação com as partes que estivessem abaixo dessa. De facto era mais fácil pedir seja aquilo que fosse a um funcionário, se a ordem viesse do patrão, sendo também a relação inversa verdadeira. Caso fosse necessário conseguir algo de um superior para um funcionário, a relação tornava-se automaticamente mais difícil, daí também a dedicação do nosso amigo ser inferior, menor a eficiência, e quase nula a energia dispensada.
Claro que nem tudo era um mar de rosas, o chefe da secção do pessoal, frustrado por natureza, aproveitava para descarregar a má gestão da sua vida pessoal no membro mais jovem e recém-chegado, ou seja ele. Assim, para além do fim para o qual o tinham contratado, era igualmente ele que acabava por realizar todas as tarefas que envolvessem o trabalho mais pesado, a responsabilidade por transmitir más notícias ás pessoas de carácter mais forte, e outros afins de carga emocional mais saliente. Sobrava ainda tempo para repreensões por parte do referido chefe, com intervalos para uma lição de sapiência, palavra essa repetida à exaustão, como se no dicionário de língua portuguesa mais não coubesse. “É triste ser assim” - pensava ele. “Já te calavas pacóvio” – e outras sugestões do género passavam-lhe pela alma. Sim porque a melhor coisa a fazer afinal de contas é ignorar, mesmo sem o transparecer. O qual a melhor forma de ignorar senão partir daqui para muito longe, quando do outro lado, do lado terrestre da coisa, alguém está a buzinar-nos aos ouvidos com pareceres que já foram ultrapassados ainda quando não estavam fora de moda. Pensamentos do tipo “já te calavas” e “pacóvio triste”, podiam levar muito longe nos sonhos acordados de qualquer pessoa que o quisesse realmente. Consegue-se levantar voo num simples “parvo”, e viajar por vales, montes e florestas. A “tristeza de parvalhão frustrado” resultante de um círculo fechado de repreensões injustas, tem a capacidade de recuar no tempo e retratar um visita ao passado, como rei, príncipe ou estrela de rock. A liberdade pode acontecer nos mais diversos locais, sendo o espaço e o tempo senhores da situação, ao dispor de todos aqueles que fizerem o obséquio de pensar um pouco e vender a alma ao infinito. Por vezes acordava sobressaltado, um grito mais agudo ou uma pergunta à espera de resposta imediata conseguia no entanto, arrancá-lo do seu estado trémulo de felicidade. Interrupção que iremos tentar resolver dentro de instantes senhor telespectador, pedimos por isso imensas desculpas, tentaremos ser breves…

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