domingo, fevereiro 17, 2013

Movimento aparente

Ligou o pc para passar mais umas horas frente ao ecrã. Jogou, jogou e jogou mais umas horas. Mais umas horas a somar às anteriores, enquanto o sol se punha e voltava a nascer. Dias de prazer frente a um ecrã. Horas infindáveis de falta de sono, por momentos singulares de uma felicidade que torna o vazio mais suportável. Um gosto que não se consegue partilhar sem estragar o apetite da vitória, quando contada aos outros. Do outro lado do edifício um homem amava. O sol pôs-se lentamente mas tornou a subir, como se da vida dependesse. O homem que amava suspirou de pena, pela passagem do tempo não lhe dar tréguas. Provavelmente tinha de despachar-se para que a sua mulher não desconfiasse, para que o seu mundo se mantivesse intacto. O prazer dele depende da felicidade de não haver marcas do que foi. Teve pena que o sol nascesse tão rápido. No final da rua um homem chora. Ele precisa de atenção. O sol não se põe. O sol tarda a nascer. O tempo não passa. O choro do homem não passa pelo tempo. A imensidão confunde-o. Frustra-lhe a vida. Ele sabe que tem o que tem e porque assim o é. Criou este mundo em que vive devagar demais. Os sons alheios vão alimentar o seu desespero. Por aqui ficamos acordados até muito, muito tarde… A mulher do edifício oposto está feliz. O seu dia está a começar. É o seu dia. Nasceu algures no tempo para trás, num momento igual a este. Espera ansiosamente pelos contactos dos outros. Espera olhando para o telefone. Ligou o pc logo pela manhã. Busca contactos também ela. Busca gratidão por existir. O sol hoje é para ela. Tudo gira em seu torno. Em torno do sol, em torno do dia, em torno do torno, o movimento dos astros que se alinharam na sua presença neste dia… A padaria já abriu. Tem o sol á sua beira, junto do mar. Um privilégio ver –se o mar a partir do balcão da padaria. Um luxo poder assistir-se á presença rotativa do sol. A menina não quer saber. Espera a sua vez. Rói as unhas com o desespero de ali se encontrar. Não pediu nada disto. Só quer comprar o maldito do pão e ir á sua vida. Enquanto espera vira-se e olha o mar ao fundo. O sol levanta-se como se de nada fosse. Não espera por ela nem pelo pão. O sol quer lá saber do pão, nem da menina, nem da padaria. Nem do pc nem do homem que chora já agora. O sol não se mexe, quem se mexe somos nós. E nem isso fazemos. Fazemos que façam tudo por nós. O nosso movimento é igual ao do sol. É aparente. Não fazemos mais amor, nem corremos atrás do tempo. Deixamos que o façam por nós. Faz-se tudo por nós. Faz-se a comida e faz-se a dormida. Choram na televisão por nós. Tomam as nossas decisões enquanto o dia passa pelo sol. Ganham os nossos prémios, escolhem e moldam os nossos desejos. Fodem por nós na internet. Nós olhamos e olhámos. Sonhamos que os momentos são nossos. Fazem parte do nosso crescimento. São parte da nossa vida. Aquela vida estatalada no sofá. O nosso prazer é visual. O nosso cérebro é letárgico. Passamos horas num sentido perdido, nas imagens efémeras dos outros, para depois ir dormir com a certeza de um dia bem passado. Um dia bem passado… até dá vontade de rir. Um dia houveram mercenários que jorravam sangue verdadeiro. Um dia as crianças choravam quando caiam ou quando não se queriam levantar. Alguns, para poder amar, passaram horas de espera atrás de uma árvore, num chão qualquer de rua, ou ansiavam em torno de uma esperança que durava dias e dias, voltas e voltas na cama, suspiros e desesperos genuínos. Houve gente que gritou por uma liberdade reprimida. Houve gente que se atirou de uma ponte por um ideal. De vez em quando vê-se gente que sai de casa para correr. Correr atrás do tempo. De vez em quando alguém manda o sistema á fava e entra no negrume da consciência. Quando se é apanhado, é a adrenalina a resolver o problema. A adrenalina é algo de raro nos dias que correm… e como correm os dias de hoje. A vida é aparente, tal como o movimento do sol.