A opinião geral era essa. Lara Lina gostava de garrafas. Todo o género de garrafas, pequenas, grandes, garrafões, desde que fossem de vidro. Nunca ninguém soube o porquê de tanta admiração por um objecto de vidro e de conteúdos uns mais líquidos do que outros. Só sabiam que ela gostava, e isso chegava-lhes. Bastava que a fizesse feliz para que o resto da aldeia o fosse também. Afinal, cada qual com a sua pancada, havia quem gostasse de moedas, selos, blocos, cromos, sacos, latas, folhas de árvore, esferográficas, relógios… Lara Lina gostava de garrafas, do formato das garrafas, do som que podíamos retirar delas se soprássemos no gargalo de um determinado ângulo, a uma determinada força. Era essa a opinião geral. O que não sabiam, era que o que tornava as garrafas tão especiais no mundo da Lina, era que um dia, pareceu-lhe, que uma delas tinha suspirado. Foi algo tão rápido que nem teve tempo de se aperceber bem aquilo que tinha acabado de ouvir. Estava ela tranquilamente a brincar no chão da sua sala, com todo o tipo de brinquedos caseiros, cordéis, rolos de cabelo, uma boneca muito estragada mas de que gostava muito, e aquela garrafa vazia. Lá fora na varanda, a rádio estava ligada no programa favorito do seu pai, enquanto este lia o jornal e fumava o seu cachimbo. O dia prometia um ritmo lento até ao seu final. O suspiro da garrafa deu-se no preciso momento em que Lara pegava na sua boneca e tentava pôr-lhe os rolos no cabelo. Lara sobressaltou, procurando em seu torno a raiz daquele som. Teria sido impressão dela apenas? Se o som lhe proporcionou algumas dúvidas, já a brisa não lhe deixava espaço para manobrar fora dali. Em poucos segundos a sua atenção focou-se na garrafa ali plantada, baça, a olhar para ela. Lara estagnou. Pensou em chamar o pai, mas acabou por não o fazer. Pegou na garrafa e observou-a. Não havia dúvidas. Estava baça e agora húmida. Lara achou que o que aquela garrafa estava a pedir era companhia. Achou que tinha esse direito, e com os anos a sua vida teve sempre a tender para a companhia. A companhia dos amigos, a companhia dos vizinhos, a companhia das pessoas que se sentiam sós. A companhia da companhia, juntamente com o estranho prazer das garrafas, coloridas, vazias ou meio cheias. Qualquer dia haveria de ouvir uma delas. Seria a prova de que ela tinha de facto ouvido uma garrafa a queixar-se.
Um dia aconteceu. Lara Lina cresceu e fez-se bela. Conheceu a companhia de um homem que a quis ouvir falar das suas luas e sois, das suas divagações e desejos. Fez-lhe companhia quando Lara não lhe pediu. Esta sentiu que pedir seria algo que não era mais necessário. O homem olhou para as suas garrafas e os seus sopros uniram-se. Ao sopro das garrafas juntou-se-lhe o do vento e do vidro nasceu o espelho. Do espelho fez-se a luz e da luz o momento. Lara nunca mais procurou a paz dos seus objectos, como quem procura a paz nas repetições. Havia quem gostasse de moedas, selos, blocos, cromos, sacos, latas, folhas de árvore, esferográficas, relógios. Havia quem gostasse das garrafas e havia quem gostasse apenas de gostar. Várias versões da mesma coisa num mundo em que todas as coisas se repetem com poucas semelhanças, mundo esse em que todas as pequenas diferenças fazem d’alguém a razão da sua semelhança.
Um dia, finalmente, repetiu-se a cena. Durante uma ida á cozinha, Lara tropeçou num momento que tinha esperado durante anos e anos. Nesse dia Lara virou-se na direcção do suspiro, quase por reflexo, mas a sua alma não tomou nota disso. Já não precisava.
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