quarta-feira, maio 16, 2007
Realidades Alternativas - Parte VIII - Invisible, invencible
O Sr. Fronteira estava satisfeito com a vida. Casado com a mulher dos seus sonhos, uma linda casa junto ao mar, uma boa posição empresarial, uma carteira de títulos invejável, e um estilo de vida versão “auto cruise”, enfim, tudo aquilo que a grande maioria das pessoas deseja para elas próprias. O sonho e talvez mais ainda. O nosso homem sentia-se bem, em concordância com o universo, em paz consigo próprio. Mas acham que alguém o iria deixar assim por muito tempo? Existe alguém neste mundo que mereça tal honra? Nem pensem nisso. Quem tudo tem, nunca satisfeito está, a coincidência limitou-se a dar o empurrãozinho que faltava, e lá foi ele, como qualquer um tomaria o mesmo caminho. O que a natureza concedeu ao Sr. Fronteira foi algo que nem ele, nem eu, nem ninguém poderia ter previsto. Os poderes superiores não concordaram com tamanha sensatez, decidindo por ele, um futuro tão radiante e tentador, que acabaria por levar o seu corpo aos riscos mais elevados. Alguém decidiu divertir-se, ver até onde poderia ir a sua audácia de homem cauteloso como ele. O que se passou foi muito simples e ao mesmo tempo muito complicado, maravilha e susto, poder e submissão. O Sr. Fronteira tornou-se invisível. Invisível para o mundo, para a sua família, para os seus vizinhos. E tudo isto aconteceu de um momento para o outro. Foi enfeitiçado pela arte de nunca ser visto em todo o seu esplendor, junto da sua cruz, com a sua sabedoria. Daqui para a frente seria sempre a descer, com todos os santos a empurrarem-se para ver o espectáculo da primeira fila. No início não compreendeu os olhares alheios que o atravessavam como nuvem. Entrou em pânico, ressentiu-se nesta nudez total, até que se fez finalmente luz, e ao seu espírito veio a surpresa, quase seguida do terror por não dominar aquilo que faz parte de nós. Resignou-se, aceitando o seu mal e ponderou o peso da sua nova limpidez. O tempo e muitas tentativas acabaram por dar os seus frutos e, consequentemente, resolver muita coisa. Com o tempo o Sr. Fronteira percebeu que podia controlar o seu novo dom. Podia mantê-lo ou não, desvanecê-lo quando quisesse, e começou a achar que, se calhar, tinha merecido isto que achava ter sido um prémio por “bom comportamento”. Achou que se tinha tornado num super herói, já antevendo o seu sucesso junto dos criminosos. Veio então a felicidade, a ansiedade em testar as suas novas capacidades, qual criança perante o seu no brinquedo. Preferiu nunca contar nada à sua mulher. Manteve sempre o segredo guardado, não fosse a coisa correr mal, não havia necessidade de expor, pelo menos para já, a sua nova situação. Talvez a inveja começasse a estabelecer-se no coração. Guardar o segredo bem guardadinho, tudo meu, tudo meu, tudo meu, tudo eu.
Começou por brincar em casa. Aproveitando o facto de estar só, fez-se de fantasma, vagueando pelos quartos, surpreendendo-se aos espelhos que não o detectavam, reaparecendo subitamente numa pose teatral, por vezes qual monstro assustador, outras vezes o espião galã com o seu ar irresistível, ou então o detective feroz, de arma em punho para o ecrã. Acumulou coragem e foi até ao jardim. Deu umas e outras voltas, mas, sem vizinhança ou outros perigos quase inexistentes levaram o nosso homem à frustração. Quis mais adrenalina. Experimentou ir á praia, e divertiu-se com a marca dos seus pés na areia. Deu um mergulho, saiu do mar, escorrendo a água pela borda da praia, e pouco mais… Pois é, um brinquedo novo tem de ser explorado até à exaustão e o formigueiro começava a entranhar-se cada vez mais na sua alma. O passo que o levou a tomar a decisão de entrar na vida alheia foi deveras curto e, após a primeira experiência no seu escritório, passando pela sala de reuniões onde ouviu comentários sobre ele, perdeu a timidez e decidiu ir mais além. Decidiu alimentar o seu ego com aventura, egoísmo, voyeurismo, e, sobretudo, malvadez.
Passou a vigiar os vizinhos, aprendendo coisas que não sabia que podiam existir, depois de vigiar começou a visitá-los no seu lar, um a um, como um fantasma, vendo-os na sua familiaridade, escutando a sua intimidade, enquanto a sua alma vibrava de prazer. Entrou nas lojas e sentiu-as à sua mercê, aprendeu códigos de segurança, esconderijos de dinheiros e chaves, e a sua alma gritou por mais. Foi a cinemas e museus, teatros e exposições. Passou a frequentar hotéis de luxo, acabando por preferir os mal afamados. Viu o crime e gostou, viu a luxúria e satisfez parte do seu desejo, espreitou e serviu-se do pecado alheio.
Deixou quem tinha de bem para frequentara vida terceira. Abandonou a mulher e a sua vida, para abraçar aquilo que sentia, o mau e o vilão. Viu brigas e envolveu-se, conheceu a morte e usou-a, até que tudo tem um fim quando queremos saber demais. Foi atingido num fogo cruzado. Morreu sem cor num dia de luz. Um negócio que não era dele largou-o no meio do nada. Foi largado tal como tinha abandonado o mundo dos sentidos e sentimentos, foi o inesperado que o alcançou, e com ele o inalcançável. Há males que vêm por bem, há bens que vêm por mal. O pior da vida são os presentes envenenados.
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"O pior da vida são os presentes envenenados..." podem não matar, mas deixam marcas!
ResponderEliminarPS: acho que não entendi bem o post mas gostei.
Tenho dias assim... acordo e dá-me para coisas sem grande sentido. pancadas...
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