terça-feira, maio 08, 2007
A fruta é só minha.
Ia ele relembrando o tempo em que era jovem, enquanto ia jogando fora as sobras das árvores. Tinha sido pobre enquanto criança, cresceu no meio da fome, acabou por ir parar à chamada tropa, fez a guerra que transforma as crianças em homens e homem de lá voltou, com ideias e formas de pensar que se adequavam à altura. O poder do humano sobre todas as coisas, a força da raça, sobretudo sobre a mulheres, mulheres essas que conheceu um dia, uma delas em particular e que ficou para sua, estando sempre no sítio certo, à hora certa, sem uma queixa, sem uma injuria que se preze, toda ela foi disciplina e ordem (a sua tropa pessoal). Os tempos que se seguiram foram duros mas sempre esteve à altura daquilo que ia aparecendo. As ajudas do estado, como recompensa por ter sido soldado, permitiram-lhe manter a cabeça fora de água e resistir, nunca sem pensar duas vezes naquilo que teria de abdicar se quisesse algo um nada melhor, e se muito abdicou, foi porque a necessidade falava sempre mais alto. Não viajou, não festejou muitas vezes, não participou, não esbanjou, não respirou muito alto… No entanto tinha a sua casinha e o seu terreno, com as suas árvores. Era tudo o que lhe tinha sobrado da existência, e já era bem bom. As suas árvores que tinham múltiplas funções, aquelas de alimentar com a sua fruta, as de fornecer sombra nos dias de calor, as do chilrear dos pássaros e o borbulhar de outras formas de vida, as de dar alguma cor ao seu mundo, as de dar trabalho com a sua manutenção, e, finalmente, as de partilhar a longevidade, acompanhando o tempo e aumentando o espaço, sinais do património, esse sim deveras grande, aquele, o património da vida.
O fruto principal das suas árvores eram esses mesmos, os frutos. Sumarentas Laranjas e apetitosos limões, alperces, pêssegos, e medronhos, figos carnudos e deliciosas romãs, as amêndoas, todo este o pedaço de Algarve, e tudo isto graças à terra cuidada pela sua mulher e por ele, terra generosa, água e muito carinho. O carinho que a sua mulher sempre tivera desejado, a cooperação, a cumplicidade, tudo isto conseguiu encontrá-lo naquele humilde terreno. E foi-lhe suficiente. Nunca tiveram filhos, apenas estes com ramos por membros, troncos por almas, seiva por sangue, abençoados pela terra-mãe.
Hoje está tão velho como as suas árvores são jovens e com mais força do que nunca, tão férteis como a sua vista é fraca, pesadas e frágeis as suas pernas . Nunca escreveu um livro, nuca teve um filho, mas plantou estas árvores como quem escreveu toda a sua vida naquela madeira, educando as suas folhas como quem vive em sobressalto, quem existe para ajudar a crescer. Esta manhã lá estava ele com baldes e baldes de fruta. A sua fruta, que conhece como a palma das suas mãos. A fruta que nunca lhe faltou, a fruta que sempre teve a mais, mas, no entanto, a mesma fruta que nunca partilhou com mais ninguém. Vi o esta manhã. Vi-o como o vejo por vezes em direcção ao contentor do lixo com os seus baldes cheios de fruta. A fruta é só dele, tal como foi a vida, tal como foi a sua forma de pensar. Hoje já não tem forças para discutir com os transeuntes que lhe criticam o facto de jogar toda aquela comida fora. Hoje já não discute, hoje aproveita a sua velhice para fazer-se surdo. Nunca pensou em distribuir a sua riqueza. Nunca lhe passou pela cabeça tal acção. Nunca teve o prazer de sentir o calor de dividir com alguém mais necessitado. Exceptuando algum familiar mais próximo que tenha passado pela sua humilde casa, nunca a sua fruta foi provada por seja quem for. Nem que fosse uma ou outra. O melhor, segundo ele, é aquilo que ele não aproveitar, ninguém mais o aproveitará. Afinal é a vida dele que está ali. É a sua vida dura e triste que ali permanece. No contentor do lixo…
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