sábado, maio 25, 2013

Quanto mais choras…





Mais um que se vai embora… Uma mala em cada mão e lá vai ele a entrar no comboio com destino a Berlim. Sem planos concretos, despediu-se da família e dos amigos. A história repete-se pela milésima vez, não é preciso estarmos aqui a prolongar-nos muito sobre o assunto. Uma vida supostamente mais próspera é o que todos esperam nesta estação. O maior. Sou o maior, pensa ele. Vou ser isto e aquilo. Vou trazer isto e mais isto. Vou mostrar a todos que consigo. Estes pensamentos também são sempre iguais. Os mesmos em todas as casas, aqueles que antecedem a partida. Os dias e as semanas que antecedem a partida. A entrada no comboio, essa, dói que se farta. A partida do comboio connosco lá dentro, essa, vai separar os homens dos “outros”. Aí a minha vida, o que fui eu fazer… e agora para onde vou. Nem sequer falo alemão… O que me deu para meter-me neste filme…
Uma das coisas que mais me chama a atenção é o momento da despedida. Já tive os meus e sei o quanto custam. Muita gente pode achar que é só uma sessão de choradeira mas não é. É uma dor que não tem explicação, e que começa muito antes da dita data de partida. Há quem engula a saliva durante semanas, com um nó na garganta, ao ponto de tremer todo por dentro, apenas para evitar uma lagrimazinha… isto porque se sabe que, se deixamos sair uma, se, por acaso, uma gotinha conseguir sair, então malta preparem-se… É uma cascata de salitre, confissões e frustrações que tão depressa ninguém se vai esquecer. Há quem não arrisque com receio de cancelar os planos todos. Então é pelo melhor engolir, e engolir, e engolir mais uma vez, ao risco de ter um ataque de nervos só para evitar a abertura dos canais.
A despedida na estação é o teste derradeiro á nossa resistência, quem tiver nervos de aço que mande vir mais dois. Normalmente poucos aguentam. Já vi desabafos acontecerem e acabarem á bofetada, já assisti a homenagem a meter músicos á mistura. Já vi gente do oriente com os seus cânticos, rodas e gritos de encorajamento, seguidos de abraços e rodas cerimoniosas. É raro aquele que não explode.
É giro quando se apanha um espertalhaço que resolveu não levar ninguém para a despedida, para evitar este tipo de situações. Esse coitado há de chorar por causa de ver os outros, e depois arrepende-se e começa a querer ligar a toda a gente. Na altura em que viajava com os meus pais não haviam telemóveis, nem tantas formas de contacto como agora, o que tornava essa situação mais aflitiva ainda. O amigo espertalhaço passava então por uma agonia tal que era pior que se tivesse trazido a cidade toda para a despedida. O coitado em vez de explodir, implodia e nesse caso, as marcas são muito mais profundas. E as figurinhas tristes também. Uma festa.
Hoje, sei que é feio mas vou aqui admiti-lo publicamente, sempre que vou viajar, seja de que meio de transporte for, procuro sempre o meu amigo Tarzan, ou o Super-Homem de serviço, aquele que vai passar de herói a florzinha de estufa, acabando derrotadamente sentado no lugar que o destino escolheu para ele, a fungar do nariz e a babar-se…Eu sei que é maldade da minha parte, eu sei…
Talvez seja porque, quando me calhou a mim, e não foram poucas as vezes que tive de me despedir, quando era ainda uma criança, já acordava a chorar, saia de casa a chorar, entrava na estação a chorar, sentava-me no lugar que me estava destinado no comboio, avião ou carro a chorar, e lá acabava por adormecer aos soluços encostado á minha mãe, para acordar algures, horas e quilómetros mais tarde…

quarta-feira, maio 22, 2013

O Sr. Joaquim já esqueceu o seu monólogo

Domingo. 02h30.


Uma alimentação equilibrada! Precisas é de comer como deve ser! Assim tudo direitinho e com juizo… (isto de falar para dentro da nossa cabeça á fácil) E fazer exercício pelo menos três vezes por semana!

- Faz tu, pensa ele para com os seus neurónios…

O pior é quando da cabeça passa para a boca. Quando se começa a exprimir aquilo que o cérebro comanda, em palavras, aí é que começam os problemas. É que não há volta a dar. Há sempre alguém que ouve e que vai registar, para no fim jogar-mo à cara. Mas estes pensamentos também não ocorrem em todas as ocasiões. Este diálogo surge quando estou sem sono, a olhar para o teto … A minha Maria está a dormir e, pelo volume do ressonar, diria que no país das fadas, a festa é rija.

Domingo. 18h45.

O Sr. Joaquim já esqueceu o seu monólogo. Está unido ao sofá de sua sala. Este sofá é oficialmente seu. Lá em casa já se estabeleceram todas as regras e todos os territórios estão devidamente delimitados. Afinal de contas, 17 anos de casamento servem para retirar qualquer dúvida em relação aos pertences de cada um. Há coisas que se partilham, e há coisas que não se partilham. Aquele sofá é dele. A sua Maria, se precisar, tem um cadeirão que a satisfaz plenamente. É ele da mesma qualidade que o seu mestre, visto terem ambos sido adquiridos em conjunto, como mandava o folheto. Calma. Em relação aos pertences e não pertences, poderíamos dedicar uma vida aos detalhes, pelo que fiquemos por aqui. Fiquemos para já pela singela declaração que, naquela casa, o Sr. Joaquim é dono e rei de determinados artigos, tarefas e atitudes, enquanto a sua Maria é proprietária indiscutível de cantos, recantos e segredos mal disfarçados, altares e cúpulas de tudo o resto. O que nos interessa verdadeiramente é a relação entre aquilo que o Sr. Joaquim pensou com os seus neurónios durante a noite, e a pose de rei com que nos brinda (sim porque neste cenário, a nossa posição é de ver tudo sem sermos vistos). Comecemos por elucidar o seguinte: a relação de monopólio que existe entre o nosso herói e o seu pousio também tem a ver com um detalhe técnico, a relativa moldagem do sofá ao seu extremo, extremo esse que já ocupa um belo terço do espaço disponível. Da mesma forma, a curvatura, ou seja a relação cabeça-pés (se podemos chamar áqueles dois currais e os seus dez leitõezinhos - pés) não permite que se consiga uma postura de ângulo reto, sendo que as próprias costas do sofá ganharam uma inclinação do estilo personalizado. O problema também é a barriga, cujo inchaço permite-nos concluir que este homem estava destinado á hibernação, pelo que o seu corpo decidiu armazenar todo o material necessário a uns bons meses de sono. Ele sabe deste problema, mas porquê? Se estava de facto destinado á hibernação, porque raio não conseguiu ele dormir ontem? É simples a resposta Joaquim. Se eu pudesse contactar-te dir-te-ia que a resposta é mesmo muito simples. O facto de não conseguires hibernar é porque estamos… na primavera. Os ursos não dormem na primavera Joaquim…

Existe portanto um dilema que é o facto do mesmo cérebro que, durante a noite, lhe tinha recomendado uma vida acompanhada de água, sopa e fruta, é o mesmo que se congratula pela posição de regalo desfrutada desde as 11h30 da manhã, batata frita, cerveja, e quem sabe se não tenho uma bela surpresa daqui a pouco e a Maria encontra-me um resto de gelado que vou limpar diretamente da caixa á boca, sem passar pela colher. Mmmmmm … Um delírio.

Se o problema, do ponto de vista do Joaquim, é a barriga, os grandes culpados não passam nem por ele, nem pelo sofá, nem pelas batatas, nem pelo possível gelado, nem pela cerveja, nem pelo facto de estar na mesma posição desde que saiu da cama, nem pela sua Maria, nem nada disso… A grande culpada disto tudo é a televisão. É ela que não me deixa fazer nada. Ela sabe como prender-me ao meu umbigo. Ela canta-me canções e conta-me histórias que duram horas e horas, ela mostra-me anúncios de mais batatas, mais cerveja e mais gelados. Ela. Ela. Ela. Uma vadía.

(do sofá surge um urge)

- Mariaaaaaaa!!!! – vai lá ver se não há nada de doce no congelador.

( do quarto um piar com pieira)

- Não há! Comeste o resto ontem.

(a resposta não se faz demorar)

- Não comi tudo não! Vai láaa!!!

(ouve-se um arrastar de correntes, que é como quem diz que a sua Maria estava deitadinha a ler qualquer coisa rosa, e teve de rebolar dali para fora, que é como quem diz outra vez que do quarto á cozinha deve-se passar pela sala, logo teria sido mais fácil que o monstro das bolachas se tivesse dignado a mexer o rabinho, quebrando a corrente sofá-cú. Não vou tentar explicar, porque não há explicação possível, ou melhor, ela há, mas não me quero meter por estes enredos).

Passado uns minutos a sua Maria volta com uma caixa semi-leve de gelado de chocolate com pepitas de chocolate e natas.

- Bem te disse que não tinha comido tudo…

- Toma lá essa merda. E sabes perfeitamente que não me chamo Maria…