sexta-feira, junho 28, 2013

















A Senhora Rosa voou. Saiu de um lugar para outro, pelas nuvens, pelo vento, pelo ar. Abriu as suas asas e foi para a zona quente do mundo. Apontou para onde o calor a chamava, qual ave migratória, em busca do sol nascente. Levou com ela, a Senhora Rosa, os sonhos daqueles que ficaram. É sempre assim para quem vê o rasto do caminho a desenhar o seu trajeto. Sobretudo para aqueles que nunca tiveram a sorte ou a coragem de sair do seu lugar encantado. Os voos alheios enchem-nos de porquês e de desejos transformados na acção dos outros. Os que fogem de casa, os que mudam de vida, de país, todos eles enchem os nossos corações de imagens e formas que nem sempre correspondem à realidade. Desses sonhos chegam a nascer autênticas lendas vivas. Os mitos vêm das vontades. A Senhora Rosa vai ao encontro do encontro. Leva uma mala no porão, um livro na mão e uma flor no cabelo. Leva uma vontade misturada de desejo e anseio, tristeza e alegria.
Cá em baixo vemos um risco no céu e pensamo-lo cheio de cores e sabores de outras regiões. Vemos o sol mais próximo desse mesmo rasgo e achamos que por lá a vida é melhor, mais quente, mais colorida.
Lá em cima a Senhora Flor mexe no cabelo, contorce os dedos. Olha para o livro sem o ver. Toca na flor que leva no cabelo. A ansiedade da partida, com toda a rotina do despedimento, é substituída pela mistura explosiva do reencontro, por parte daqueles que ansiosamente a esperam. No meio fica o único momento em que se respira. Momento esse que pode durar ou não. A ilusão da calma paralisa-se no ínfimo instante que passa entre estes dois períodos, num misto de dor e de paz, ou melhor, paz entre as dores.
Nós, comuns observadores temos uma visão que nos provoca inveja. Olhamos e louvamos a ideia de viagem. Gostamos de nos despedir e fazer questão de demonstrar um pesar pela importância da partida. A chegada, essa tem igualmente sabor a braço de ferro vencido, que é preciso marcar com urros e abraços. A festa é rija quando se chega ao destino, trabalho hercúleo este.
Já para nós, viajantes, é mais uma forma de sair de um lugar e chegar a outro. Temos de levar com os festejos que nem sempre são o resultado das nossas emoções. Um porto. Um destino forçado por vezes. Uma lenda de vontade. Nem todas as viagens são de lazer, de aventura, de paixão pelas imagens, pelas fotos do mar e da praia. As colinas verdejantes não nascem dos aeroportos. Nascem dos olhos de quem fica e vê nos aeroportos o caminho da vida selvagem.
Em breve o avião prepara-se para pousar.
Tem calma Senhora Rosa. Respira fundo. Aclara a garganta. Vai correr tudo bem. Deste lado alguém te ama. E do outro também.

No meio está o vazio


O Sr. Flores sente-se vazio no meio do vazio. O nada no nada, o repetir no interior de uma partícula de si próprio, que, por mais pequena que lhe semelhe, acaba ser a maior de todas as não presenças do seu ser. Sente o peso do invisível, a falta pela falta, o desaparecimento pela ausência que se avizinha. É isso o vazio. A ausência. A dor da falta de alguma coisa que até podia ser aqui transparecida, mas não tiraria por isso o sentido á sensação. O Sr. Flores sente uma bola de sabão no lugar do estômago. Sente que pesa menos 10 quilos, O oposto dos abdominais. O Sr. Flores sente o os "nãobdominais". O dia passa por ele como o vento passa pelas montanhas. Apenas passa enquanto o seu olhar mantém-se á velocidade cruzeiro de uma sombra. O movimento das ruas em seu redor não se faz esperar. Os carros passam à mesma velocidade estonteante, enquanto os transeuntes fazem o possível para sentir que nada é em vão. Ao longe os semáforos vão controlando os avanços e recuos da sociedade, enquanto os negócios e outras amostras de trocas se preparam para enfrentar o dia. O Sr. Flores passa por eles, qual espectro, qual sombra, qual torre do relógio que vê tudo sem se manifestar, apenas manifestando a cor das suas janelas, indiferente a quem nasça ou morra. O Sr. Flores sente o desaparecimento como quem sente a faca a entrar pela garganta abaixo. Ele sofre o mal dos males. Ele sente ausência.
O Sr. Flores não é, no entanto um desgraçado, um triste, um sem sentido. O Sr. Flores é um privilegiado. Só ele o sabe, só ele o compreende, ele mais uns poucos neste mundo. Os loucos como ele que enlouqueceram e que sentem a ausência da loucura. Aqueles que escolheram repetir a felicidade milhares de vezes no seu interior, desaparecendo a cada segundo multiplicado, voando desta vida, tornando-se invisíveis aos olhos da camada rochosa do nosso planeta,e das pessoas que o pisam, sem saber o que estão a perder. A intensidade da contração muscular, a pressão do puro prazer, o esforço que nos sai das entranhas, tudo isso tem um lado B, aquele que nos retira parte dos órgãos e nos deixam secos, encovados, á beira da extinção. No entanto, prontos para reviver ao expoente máximo tudo aquilo que nos abrigou da demência, roçando-a com delícia. O Sr. Flores não é de lamentar. O Sr. Flores encontrou aquilo que pensava não existir. E recebeu-o de braços abertos, enquanto se foi desvairando até se desfazer no pó do universo. E o Universo? Esse vai desfazê-lo sem dó nem piedade. Esse vagabundo das estrelas vai desmontar toda e cada partícula do Sr. Flores, numa vã tentativa de descobrir de onde vem o prazer. Esse Universo vai atuar da forma que apenas ele sabe, não pela força que nos traz a natureza, mas por inveja do Sr. Flores. Pura inveja caro Universo. As tuas estrelas todas juntas não chegam aos calcanhares do vazio do Sr. Flores.
Embrulha.

Deitamo-nos tarde


Há quem queira sair daqui, de foice na mão. Há quem saiba que lá fora é tarde e a noite não se explica sempre que entra, sem ser de rompante. Aproxima-se e impõe-se. Instala-se e cumpre o seu dever, a sua promessa. Há quem chame a noite pelas entranhas do seu âmago na esperança de ver uma luz que entre na alma sempre que o sol se põe. Há quem se esprema lá em baixo, ao olhar de quem está confinado ao seu quadrado de vida, metros mais acima, vomitando num esgar de curiosidade e prazer, perante a falta de ar da vida, o languir do tempo que passa... lá fora, nas valas e nos passeios, anda gente que parece precisar de encontrar qualquer coisa que deixe de ser e passe a fazer sentido. Todos procuram o mesmo sem esperança de o encontrar... alguém já o levou e não nos deixou nada. Pelo menos é o que tentamos fazer crer. Andamos de cabeça erguida á espera que a esperança se digne a cuspir-nos em cima... ou não. É o que tentamos fazer crer...
Ou não. Não. E Não. E Não. NÃO!
Não para ti esperança ilusória. Não para ti especulação de felicidade. Estamos cá e respiramos o teu ar ao rir-te na cara. Não te procuramos mas sim fugimos de ti sem medo nem pestanejo. Não estás paciência... nós estamos. Que o saibas de uma vez por todas. Somos na imperfeição. Deitamo-nos tarde e regressamos na noite seguinte. Por aqui tudo se faz do nada. Por aqui alguém ama, alguém mata, alguém foge. Alguém fica a ver e refugia-se naquilo que deveria ter feito. Todos o sentem e o reproduzem vezes sem fim, repetindo a dor, repetindo o prazer, repetindo a repetição.
Não para ti felicidade. És filha do engano. És filha da puta. És filha do homem com “h” pequeno. Aquele homem mais homem que já alguma vez conheceste. Aquele que mente, aquele que engana, aquele que vibra na sombra e na sabedoria da vida.
Felicidade não nos assombres. Somos homens e não imagens do fim. Festejamos no limite da compreensão e amamos como se não houvesse amanhã. Impingimo-nos no extremo das nossas forças. Somos agressivos e esfomeados. Somos mais que tu alguma vez pensaste respirar. Odiamo-nos e temos orgulho nisso. Felicidade, cara amiga, enviar-te-emos flores no teu funeral. Por aqui deitamo-nos tarde. muito tarde.

Somewhere under the rainbow



O sol passou a sua luz pela densa humidade, dividindo-se pelas sete cores que compõe a luz branca. Luz. Branca. Sete Cores.
Cá em baixo, a Senhora Íris já se apercebeu do fenómeno. Olha sem ver. Pensa que se sente só. Sente-se só apesar dos gritos que vão ecoando da sala. O resto da família discute, entrando no espaço pessoal de cada um, até faiscar. Se é que exista tal coisa, numa família, como um espaço pessoal assim tão grande. Afinal, família é sinal de espaço de manobra limitado, partilhado por todos e em todos. Quando as coisas vão mal a ofensa entra forte, a chamada baixaria está de serviço, até mesmo no interior de uma família.
A Senhora Íris não tem esse direito sequer. Não se pode dar ao luxo de opinar sobretudo durante uma guerra. Tem o direito a ter a mesa pronta para todos comerem, tem o direito de ter a casa limpa e arrumada, pode até ser criada de todos, e ver a novela na televisão da cozinha.
Na sala todos querem ter razão. O chefe de família á beira da reforma, os dois filhos desempregados, as respetivas esposas, uma criança. Todos lá moram. Todos lá comem. Todos esperam ser servidos. Todos acham que são os maiores, que têm sempre razão, não têm culpa em não ter nada, têm razão em merecer apoios, têm a obrigação de palmadas nas costas, de empatia, de mérito. Só ninguém consegue explicar porquê. Então culpa-se o próximo e alimentamo-nos dessa mesma culpa. Mais cedo ou mais tarde, o próximo estará mesmo ao nosso lado, e conhecendo-nos tão bem como o conhecemos a ele.
A senhora Íris congelou o olhar no topo do edifício oposto, junto da linha que o une ao céu. Mesmo por baixo do arco-íris. Daí sonha com outros lugares e aguarda a sua vez, a sua vez de voar, como o azul do céu que tudo explora, tudo conhece, a sua vez de ver coisas novas, gente nova com sorrisos em vez de opiniões… Assim vai pensando, até quando, um dia, será que amanhã, será que para a semana? Até quando? Então Senhora Íris, não sabes que vais sonhando apenas até chegar a hora em que terás de levantar a mesa? Afinal como não possuis os estudos dos outros, é natural que te caibam essas tarefas, tantas vezes to disseram as tuas noras. Elas sim estudaram e merecem um estatuto ao seu nível. Um trabalho ao seu nível. Um salário estrondosamente válido para as suas capacidades. Tudo aquilo que não se enquadrar nestes parâmetros não serve. Ela gostava que lhe dissessem outras coisas. Poderiam conversar com ela um bocadinho. Gostava que lhe dissessem qualquer coisa de bonito. Só de vez em quando. Era simpático da parte de todos deles. Coitados. Não estão para isso. Este país não ajuda ninguém. Coitados dos meus filhos, dias a fio sentados a olhar um pró outro, lá na sala… E a criança, o que vai ser dela? O pior, Senhora Íris, o mal é seres uma querida. É tentares agradar. É fazeres tudo por amor. Neste caso Senhora Íris, o amor não ajuda…
No edifício onde ela pousa o olhar encontram-se várias janelas com as suas persianas abertas. Também aí há gente à mesa. Também aí vivem famílias. Por vezes consegue vislumbrar um vulto a passar por uma dessas janelas, e logo inventa um cenário, uma telenovela, uma história. Hoje sente-se um pouco só. Falta-lhe a coragem para inventar seja o que for...

5-4-3-2-1... descida abrupta à terra....

- Mãe!!! A sério que é isto que queres que a gente coma?