quarta-feira, março 06, 2013

Entraram e saíram sem dizer nada

check-in check-out


Entraram e saíram passadas algumas horas. Não deixaram identificação. Pagaram a estadia e o champanhe. Check-in, check-out e acabou. Não desfrutaram do pequeno-almoço, não foram á piscina, não fizeram nenhuma massagem. Para eles foi apenas um quarto. Só mais um, como tantos outros. Mais cedo um hóspede visivelmente alcoolizado tinha jurado ter passado os melhores dias da vida dele. As férias resumiam-se a um ano de trabalho concentrado nestes dias no mesmo hotel, num quarto igualzinho, com a exceção de que seria um dos poucos momentos bons da vida dele, pelo menos durante os próximos 365 dias. Este senhor tinha evidentemente trabalhado o dobro antes de ir de férias, e o dobro iria ter de trabalhar para recuperar o tempo de lazer. Levara os dias a jogar golfe durante o dia, e beber durante a noite, terminando sempre no estado mais lastimoso possível. Conforme a estadia se ia aproximando do fim, o nível de álcool no sangue ia aumentando, crispando no seu rosto o recíproco aumento do mau estar, perante a imagem do regresso. No piso acima um casal queixa-se do barulho dos vizinhos que conversam e vêm televisão com o volume no máximo a noite toda. Este casal faz igualmente questão do seu retiro no Algarve, desta feita mais vezes durante o ano. É o verão, o carnaval a pascoa e o ano novo. Só o Natal, com muita pena, deve ser passado no lugar de origem junto dos seus. Os vizinhos que vêm televisão já têm uma idade avançada. O que acontece é que adormecem cedo e a televisão fica ligada a um volume exagerado, volume esse que não os incomoda mais, primeiro porque se o ouvissem até era mais uma companhia. Os ouvidos já não funcionam já há alguns anos. O ritmo mantém-se porém. O hábito de ser humano leva-os ao mesmo hotel, se possível ao mesmo quarto, ano após ano. O dinheiro entra exatamente na mesma medida e é guardado com a mesma organização desde o primeiro dia que entraram neste local. Não são férias, são recordações, são hábitos associados aquele de acordar de manhã e tomar o pequeno-almoço á mesmíssima hora, com os mesmíssimos ingredientes a cada ano que passa. A noite também passa e faço-me testemunha silenciosa de tudo o que acontece por aqui. Hoje sou aquilo que se chama na gíria hoteleira night, ou night auditor, ou auditor da noite, morcego para os colegas, batman para o ego. Por mim passam corpos e sombras daquilo que eram homens e mulheres de perfeita condição durante o dia. Rostos cansados, alterados, zangados ou perdidos, perante o meu espaço. Sorrio e tento ser simpático, enquanto me protejo de algum jeito mais maldoso que a noite por vezes trás. Estou sozinho mas nunca me sinto só. Faço-me de forte quando faz falta, enquanto tremo de ansiedade perante certas atitudes menos cordiais. Cada qual tem aquilo que merece.

Fecha os olhos...


O cenário é uma estação de comboio. O cheiro é de metal e café. O frio também entra pelas narinas, queimando o asfalto do trato conforme vai passando. Se pararmos de respirar, a dor passa. O desconforto da rua passa a ser o desconforto do interior das carruagens. Metade das pessoas deste local vai para uma migração diária, aquela que os leva ao fim do mês, aquela que é feita por consciência, por obrigação, por tédio e ódio. Por resignação também. Por vezes chega-se a imaginar como teria sido a vida se fôssemos crianças todo o tempo. Como seria o tempo se não existisse ainda a maldade, se não deixássemos fugir esse sentimento e ficássemos agarrados às saias das nossas mães, o desejo de ter uma vida sem responsabilidades nem dores, um lugar próprio sem pressas. Por que raio vim aqui parar, porque está assim o meu destino, que fui eu fazer eu, mas que merda… As linhas sujas deixam passar o vento pela simetria. Sob os arcos, os comboios esperam a iniciativa, burros de carga sem emoção. Cá fora o movimento é constante, sobe, desce, entra, sai. Corre-se sem necessidade. Ainda não sai ninguém daqui. Algumas pessoas vão sumir-se, a partir deste ponto. A partir deste ponto começa um novo conto. Um conto que passa por lá. Um conto que inicia-se nas lágrimas de despedida numa fria e insensível estação de comboio. Malas e sacos, lágrimas e abraços. Famílias inteiras ou apenas o homem da casa, que se vai sem saber bem o que o espera no outro lado da esperança. Estação reles a da despedida, em que tantas vezes sonhei em não entrar. Estações de merda, aquelas que me fizeram sofrer quando era mais novo, criança ainda. Todas elas odeio-as. Recordações para esquecer um dia. Á volta dos comboios simula-se a vida. Vendem-se os jornais, prepara-se o pequeno-almoço, flores, mapas, material de viagem. Tudo misturado confunde e cansa só de olhar. Pede-se dinheiro emprestado, procura-se uma mala perdida. Guardamos as carteiras junto de nós em momentos de aflição. O medo investe sem armadura. Ganhar é perder. Perder-se nesta estação é o início do fim. Todos alerta. De repente ouve-se um grito de alegria. As pessoas encontram-se finalmente, passados tantos dias sem se verem. A estação também tem destas coisas de felicidade. O gelo desaparece por momentos. Abraços ofegantes e beijos e mais beijos. Sorrisos e lágrimas de felicidade. De braço dado, os amores agrupam-se e saem apressadamente deste local. O contacto físico fecha os nossos olhos até chegarmos a outro lado. O lado de fora. Fora desta estação, rumo á próxima viagem.

...mesmo que no fim.

Entrou-me pela calada. Sem avisar. Quando cheguei já estava á minha espera, junto do estacionamento, ao longo de uma fila de carros imóveis, frios mudos. A noite avançava sem indícios de uma mudança no tempo. Pelo menos para mim. No meu íntimo sentia-me de rastos, o meu estado em modo self destruct como se costuma dizer. Do nada fez-se click, dois beijos e os nomes trocados. Um ar disciplinado e sério, contra o ar da derrota e da busca por um porto. Um qualquer. Foi assim que me sinto ao completar aquele dia. A minha bóia de salvação tinha chegado sem mo dizer. Passados anos iria compreender que o mundo afinal ainda se manteria em pé por muito tempo. Passados séculos iria entender que toda a vida depende de um momento. Que poderiam passar milénios sem admitir a minha derrota, nem o meu amor, nem o passar do coração para o outro lado da barreira, a da ilusão de felicidade, a do deserto tropical. Entrou pela calada e calada ficaste enquanto não fui senão abordando assuntos que me pudessem ligar a ti. Ficaste á espera mas não te fiz tardar. Acordei deste vácuo quando te vi pegar na tua lira. O teu momento passou a ser meu e repreendi-me por ter deixado este segundo passar tão depressa. Então fui capaz de pegar no touro e beijá-lo na boca. Enfrentei-o com as palmas das mãos e então consegui esboçar um sorriso. Este sorriso deste-mo tu. No meu deserto recebo este oásis. Aceito-o como meu. Como se fosse perfeito este dia, mesmo que no fim.

O teu lugar Inventado


Lembro-te no ar
Recordo-te nas flores, nas sensações, nas palavras,
O lugar por ti inventado que afinal floresça
Nos nossos corações.

Aqui fica um espaço que nos criaste
Recordamos-te no vazio e no pleno,
O lugar por ti inventado nos guia e ilumina
Orienta-nos neste dom de iludir

Continuas aqui junto de nós
O teu lugar inventado, na nossa dor
Serás sempre nosso, seremos sempre teus
Nesta forma de ilusão que não nos chega
Mas nos engana

Que o lugar que inventaste seja a tua felicidade
 Quer estejas a voar,
a soprar no vento
A vibrar nas cordas do meu bandolim
Ou simplesmente no escuro da noite,

No calor do sol
Nas chuvas de Abril
Caso estejas a sorrir
Caso estejas a sonhar
Por aqui jamais estará tudo bem

Obrigado por teres passado um dia
No encalço da nossa encruzilhada
O caminho é sinuoso,
mas no fim
Estaremos todos e cada um de nós
No nosso lugar inventado.