quarta-feira, agosto 15, 2007

Realidades Alternativas - Parte XI - A Senhora Maria quer escrever


A Senhora Maria acordou com vontade de ser alguém. Sonhou em ser perfeita e reconhecida pelo mundo. Primeiro pensou que queria ser actriz, depois bailarina, mas passou os olhos pela televisão e achou que poderia ser escritora de livros infantis. Achou que não era muito difícil escrever para crianças. Sentou-se à escrivaninha de madeira, pousou a cabeça sob as palmas das mãos em forma de borboleta e resolveu pensar e pensar… achou que, afinal de contas não deveria ser muito complicado encontrar um novelo de história que fosse da compreensão de uma criança. Espreitou pela janela que dava para uma rua bastante inclinada, por onde poucos carros passavam mas que servia de rampa de lançamento a todos aqueles que gostavam de experimentar pela primeira vez, os prazeres de uma bicicleta ou de uns patins. Muitas quedas, muitas nódoas negras, sustos quanto baste, mas acima de tudo muito prazer e emoções partilhadas por pais e filhos daquela rua. A senhora Maria achou que era capaz de escrever uma história para crianças. Continuou a organizar um pensamento que muitas vezes fugia devido à sua natural falta de concentração. O que a Senhora Maria queria mesmo era dar fluxo no papel, à sua imaginação fértil. Bastava que alguém inventasse uma máquina de registar os pensamentos para que ela fosse, de um dia para o outro, reconhecida pelo seu talento de fugir deste planeta e lançar-se nas aventuras mais loucas e doces, que só uma criança consegue ter. Já se imaginava a ler a sua história para outras crianças, numa escola qualquer, perante uma sala cheia de pais interessados. Basta querer Maria, dizia-se. O seu primeiro pensamento envolveu uma bola vermelha que um menino queria muito por vê-la no jardim do seu vizinho, mas por qualquer motivo, a bola transformava-se em crocodilo verde e o rapaz era agora uma rapariga de saia cor-de-rosa e chupa-chupa na boca. Do nada, a sua alma desvanecia-se e quando dava por ela, já estava a pensar nas compras que tinha de fazer e em toda a roupa que tinha de lavar até ao final da semana, estar tudo pronto para receber a família. A senhora Maria já era alguém, mesmo se não o achasse. No entanto pensava que o seu trabalho era infrutífero e que pouco brilho lhe dava ao ego. Ser mãe e mulher não lhe era especialmente gratificante. Mesmo se em volta dela tudo representava felicidade, amor e fortuna, era respeitada por todo o seu trabalho pelo marido, pelos filhos, pela vizinhança. Naquele dia a Senhora Maria acordou com vontade de ser alguém e pronto. Alguém diferente como quem faz algo que vai melhorar um bocadinho o mundo, mas à escala maior. Pensou na bola vermelha e nas crianças que passavam de bicicleta pela sua janela. Pensou na sua família este fim-de-semana, pensou no dia em que casou, no dia em que nasceu o seu segundo filho, no dia em que resolveu ficar em casa, e no dia em que pensou em escrever qualquer coisa para que não se esquecessem dela um dia…. Pensou que se calhar deveria começar por um desenho, já que se um livro não tiver uma qualquer gravura, então a probabilidade de ser escolhido diminui drasticamente. Basta querer Maria dizia-se. Qualquer coisa há-de sair daqui. Algo de bom vai resultar. Talvez se conseguir que alguém o leia e goste. Talvez se conseguir pelo menos que alguém o leia. Já era bom… Maria, hoje em dia toda a gente faz-se sentir de uma maneira ou de outra. Tudo o que existe em nós é reflectido de qualquer maneira. Escrevendo ou não, tudo aquilo que tens dentro de ti sai e espalha o seu aroma pelos locais por onde passas. A vida é desenhada por todas as senhoras marias, assim como todos os outros senhores, meninos e meninas, animais, carros e ruas, dinheiro e emendas, que fazem tudo aquilo que são resultado daquilo que os representa, onde quer que se sintam representados, neste mundo e em todos os outros, talvez o dia o entendas. Se o escreveres é como se o gritasses de forma mais específica e mais directa, é só isso e mais nada. Então se for preciso grita-o. Grita todo o teu sentir, felicidade e penar, escreve a tua voz naquilo que és, risca as paredes com a tua alma, aquilo que queres pode ser descrito no palco da vida. Se o escreveres, quando o escreveres, onde quer que o escrevas, és e serás sempre aquilo que te apetece, mas só se o quiseres mesmo. A isto chamamos de paz de espírito. Ou então de amor…

sexta-feira, agosto 10, 2007

Realidades Alternativas - Parte X - Troca por Troca


Um dia Linda Freedom encontrou-se com ela própria, desta vez senhora, à sua frente, mais especificamente Sra Linda Newown, versão idade 42 anos, vestido comprido, cabelo apanhado com a ajuda de um gancho, sapatos de salto alto, malinha de mão de pele e de marca conhecida, transmitindo sucesso financeiro, juntando-se abundância na segurança e equilíbrio no balançar, não fosse, no entanto, os rasgos de preocupação com que nos prometia, olhando para a sua versão adolescente, qual espelho mágico de circo ou de feiras popular, sombra e pastilha elástica, T-shirt, sapatilhas e mochila às costas, símbolo da instabilidade da própria idade, receio versus prazer juvenil, que invejava e era invejada de volta. Ambas se viram uma na outra, perguntando se estaria aquilo deveras a acontecer, teria a sorte finalmente batido àquela porta, com tanto poder, vendo-se a mais nova com a informação de que estaria viva e segura por essa altura, algo que nem a própria certeza poderia garantir, por meio de tantos sonhos, desilusões e incertezas em busca de respostas, e que recebe em troca o desequilíbrio mentais e misturas explosivas de sexo, álcool e outras experiências cada uma mais alucinatória do que a outra. LINDA, Newown de seu nome daria tudo para voltar a ser quem era, mantendo a capacidade de recordar tudo aquilo que lhe tinha sucedido até então. O que ela não imagina é que tudo contrabalança no baralho de cartas da realidade. Basta um segundo de inexactidão, um grão de areia num prato fundo de pureza, um milímetro apenas, desviado do ponto de chegada, a muitos quilómetros de distância no universo, para que tudo se desfaça em mil pedaços por causa das chamadas pedrinhas que desviam toda a engrenagem. O cenário resumia-se a um silêncio absurdo entre as duas, um tremer das almas, uma sensação de mal estar e de medo aliado ao sobretudo da surpresa, sendo os dois lado da mesma moeda, doendo fosse coisa boa, ou fosse coisa má. O atordoado silêncio depressa se transformou em formigueiro, e daí a areia foi num ápice, e pronto, o mundo desabou. Nenhuma se atreveu a falar mas tal não era necessário. Da voz da alma surgiu a contemplação mútua, dialogo surdo de quem sabe exactamente o que é, quando e porquê. A possibilidade de alguém poder se encontrar com a sua própria pessoa a partir do futuro era por si já, uma lotaria impossível. A mesma sorte de alguém cruzar-se com o seu passado não fica de forma alguma atrás. A probabilidade juntamente com a veracidade da acção confere a este pesar o seu ar celestial. Mas o pior veio depois. Se acrescentarmos a tudo isto o facto de dois planos da mesma linha se tocarem e se reunirem com o tempo, crepe chinês chamaram um dia, faz deste momento algo ainda mais inverosímil. Ambas as Lindas tiveram a possibilidade, por meros segundos, de tomar a decisão e trocar as respectivas posições. Uma troca de versão do corpo, um intercâmbio da mesma alma. Uma delas tem a possibilidade de regressar à juventude, já a outra avançará sem ter experimentado a luta incessante de quem procura trabalho, casa, família, aquilo que alguns gostam de chamar de felicidade, paz interior, outros não o entendem assim. Juntas pensaram o mesmo. Por mais injusto que seja o facto de estarem ali e que a escolha venha a beneficiar uma mais do que a outra, o facto de estar ali era desde já algo de só por si imensurável. Afinal de contas quem consegue isto? Quem tem esta oportunidade? Nem sequer se deve ponderar isto. Trocam-se assim os tempos, os hábitos, mudam-se as mascaras e leva-se a alma para algo nunca imaginado antes. O medo, a viagem, e pronto. Aqui estão duas versões entre milhares possíveis. Uma realidade não afecta a outra, a não ser a lembrança, a memória, ou talvez não. A ligação está lá pelo menos…