terça-feira, agosto 29, 2006

Perfeição (ou o poder da escrita)

O olhar estende-se até um infinito de céu claro e desimpedido. O mundo à minha volta está calmo e sereno. Num fechar de olhos estou de novo em casa. Voltei apenas pela força do meu desejo. Regressei para partir de novo, desta vez em direcção ao oriente. Todos os locais estão repletos de cor e de brilho. As pessoas à minha volta estão felizes, fazendo tudo aquilo que sempre desejaram. Nas praças os mercadores mostram-me com satisfação os seus produtos, ora sumarentos, mais doces que nunca, ora coloridos, sem imperfeições, tudo isto resultado da qualidade sem defeito, reflectida nos seus sorrisos, e pagos, não pelo dinheiro, mas pelos risos ou pela simples troca por algo de igual prazer. As ruas respiram frescura, os jardins ordem, os estádios, estabelecimentos de serviços, tudo inspira confiança, segurança e simplicidade de execução. Palmas e cumprimentos. Alegria, Paz e sossego. Gentes de beleza, pessoas de saúde, ares felizes ultrapassam-se por mais longe que voe, mais alto que suba. Corro e salto, observo a minha própria força, reconheço-a como um privilégio comum a todos. Enalteço os meus sentimentos e agradeço-me por ser feliz. Não chove em Londres...

Não há como isto. A realidade não tem a mínima força contra o poder das minhas palavras. É impossível ser como sou, quando escrevo, quando me completo e me descubro nas linhas de mim. Se céu e inferno existem, estão desta forma ligados pela escrita versus a realidade. Aqui tudo brilha, tudo é luz, tudo é fado. Já do outro lado, a intempérie mantêm-se constante, inconstante, ameaçadora. Não pensemos nisto agora, pensemos antes no acto de ser aquilo que se quer ser. Quem não gosta que viva da realidade…

Divagar se vai a qualquer lugar

Olhava as pessoas sem as ver. Era de manhã e ainda não tinha conseguido passar do estado de hipnose que o leva para o trabalho, dia após dia. De casa para a estação, da estação para o comboio, depois o autocarro e finalmente a caminhada final para o posto de trabalho, na recepção da empresa jornalística. Iria ter de cumprimentar primeiro a senhora da limpeza que lhe abriria a porta, ao que se seguisse os funcionários que fossem aparecendo assim como aqueles que já lá estavam, seguindo-se os patrões conforme fossem aparecendo, e finalmente os utentes, curiosos e outros demais que se apresentassem ali. Tudo isto sempre em velocidade cruzeiro, até que por fim lhe fosse dada qualquer ordem extra a cumprir. Aí iria optar pela pose do trabalhador dedicado, eficiente e enérgico, adjectivos esses cujo grau de importância seria proporcional ao estatuto da entidade requerente em questão. É preciso dizer que tanto mais importante fosse a posição da referida entidade, mais fácil seria também a comunicação com as partes que estivessem abaixo dessa. De facto era mais fácil pedir seja aquilo que fosse a um funcionário, se a ordem viesse do patrão, sendo também a relação inversa verdadeira. Caso fosse necessário conseguir algo de um superior para um funcionário, a relação tornava-se automaticamente mais difícil, daí também a dedicação do nosso amigo ser inferior, menor a eficiência, e quase nula a energia dispensada.
Claro que nem tudo era um mar de rosas, o chefe da secção do pessoal, frustrado por natureza, aproveitava para descarregar a má gestão da sua vida pessoal no membro mais jovem e recém-chegado, ou seja ele. Assim, para além do fim para o qual o tinham contratado, era igualmente ele que acabava por realizar todas as tarefas que envolvessem o trabalho mais pesado, a responsabilidade por transmitir más notícias ás pessoas de carácter mais forte, e outros afins de carga emocional mais saliente. Sobrava ainda tempo para repreensões por parte do referido chefe, com intervalos para uma lição de sapiência, palavra essa repetida à exaustão, como se no dicionário de língua portuguesa mais não coubesse. “É triste ser assim” - pensava ele. “Já te calavas pacóvio” – e outras sugestões do género passavam-lhe pela alma. Sim porque a melhor coisa a fazer afinal de contas é ignorar, mesmo sem o transparecer. O qual a melhor forma de ignorar senão partir daqui para muito longe, quando do outro lado, do lado terrestre da coisa, alguém está a buzinar-nos aos ouvidos com pareceres que já foram ultrapassados ainda quando não estavam fora de moda. Pensamentos do tipo “já te calavas” e “pacóvio triste”, podiam levar muito longe nos sonhos acordados de qualquer pessoa que o quisesse realmente. Consegue-se levantar voo num simples “parvo”, e viajar por vales, montes e florestas. A “tristeza de parvalhão frustrado” resultante de um círculo fechado de repreensões injustas, tem a capacidade de recuar no tempo e retratar um visita ao passado, como rei, príncipe ou estrela de rock. A liberdade pode acontecer nos mais diversos locais, sendo o espaço e o tempo senhores da situação, ao dispor de todos aqueles que fizerem o obséquio de pensar um pouco e vender a alma ao infinito. Por vezes acordava sobressaltado, um grito mais agudo ou uma pergunta à espera de resposta imediata conseguia no entanto, arrancá-lo do seu estado trémulo de felicidade. Interrupção que iremos tentar resolver dentro de instantes senhor telespectador, pedimos por isso imensas desculpas, tentaremos ser breves…

Anos perdidos

O Rodrigo de 10 anos tem um telemóvel. Os pais compraram-lho porque era uma coisa que ele queria muito, e, agora falando sério, é algo muito importante porque permite comunicar com ele para saber se está tudo bem, para o caso de não sabermos por onde anda, faz muita falta mesmo. Na escola o Rodrigo mostrou com muito orgulho, o magnífico aparelho de alta tecnologia que agora possui. Ligou para todos aqueles que também tinham um telemóvel, mudou os toques, enviou mensagens, memorizou todos os números que conseguiu. Logo o saldo inicial acabou, e quando a sua mãe, orgulhosamente, ligou para saber se estava tudo bem, o menino pediu-lhe logo que lhe carregasse o cartão com, pelo menos, mais 25 euros. A mãe de início não concordou com tal quantia mas perante a cólera do filho, acabou por fazer um carregamento de mais 15 euros. Depressa o saldo chegou ao fim, e os problemas começaram a surgir quando, em casa, os pais do Rodrigo tentavam em vão convencê-lo a chegar a um acordo quanto ao montante e ao período em que lhe iriam fazer tais carregamentos. “é muito importante estarmos sempre em contacto com ele” – explicava a mãe junto das amigas. “… Importante era que ele desse valor á escola. Já chumbou 2 vezes…” – comentavam entre elas as amigas (da onça). O Rodrigo tinha tudo: a consola, a bicicleta, o televisor no quarto, o leitor de dvd, brinquedos e mais brinquedos… Tudo aquilo que ele sempre quis. Exigia sempre mais, transformando o desejo em necessidade, instrução tal que os pais recebiam com o maior dos interesses, fazendo-lhe imediatamente a vontade, como se educar fosse sinónimo de prazer imediato. Rodrigo era na realidade aquilo que eu tinha todo o prazer em chamar de gordo burro, facto esse que me valeu muitas repreensões e castigos. Tudo aquilo deixava-me ferido de raiva. Não tinha nem telemóvel, nem televisão no quarto, e a minha bicicleta já estava a ficar pequena demais. Tinha boas notas na escola, mas nada disso era sinónimo de prendas quando os meus pais, mesmo se tendo uma situação mais confortável do que os do Rodrigo gordo, achavam que não tinha necessidade de bens do género para ser feliz… Odiava-o com todas as minhas forças. Quando um dia tivesse a oportunidade de magoá-lo iria fazê-lo sem pensar duas vezes...
Um dia pedi ao meu pai um telemóvel. Escusado será dizer que a resposta foi um redondo NÃO, ou melhor um "deves estar mas é parvo..." que nem sequer me fez ferida, já que o tiro que era a minha pergunta, tinha sido enviado com a derrota presa á bala, de qualquer forma tinha sido apenas para testar que não estava enganado. Os meus pais não eram os pais do burro gordo do Rodrigo. Costumava ouvir os adultos dizer que o Rodrigo iria acabar mal, que era um mimado, daqui a nada seria uma mota, depois um carro, que os pais dele iriam ceder a tudo até ficarem sem um tostão, e que provavelmente acabaria por ser um marginal sem nada na cabeça até fazer uma asneira e destruir a própria vida. Tudo isto e muito mais não compensa o facto dele ter tudo aquilo que gosta e eu não. Nunca me convenceu essa história. Por mais bonzinho que seja nunca vou ter o que o Rodrigo tem e o resto é conversa! Quaquer dia apanho-o...

Realidades Alternativas - Parte V - Biografia de um televisor comprado em promoção (pois claro)

Família: Os Fonseca Almeida

Pai - Manuel - (ensino secundário, empregado dos correios, sonhos: a televisão e o sistema de cinema em casa, aspirações: nenhuma, interesses: futebol, jornal).

Mãe - Maria da Saúde - (ensino secundário, empregada de escritório, sonhos: férias no Algarve como as amigas, aspirações: nenhuma, interesses: novelas brasileiras, revistas de novelas).

Joana - (frequência do 3º ano do curso de gestão no ensino superior privado, sonhos: casa e carro, aspirações: acabar o curso e trabalhar numa grande empresa, interesses: novelas portuguesas e brasileiras, festas).

Luís - (7º ano do ensino secundário, sonhos: ter um telemóvel, uma bicicleta e uma consola de jogos, um computador com internet, aspirações: ser jogador de futebol, interesses: novelas para adolescentes, desenhos animados, filmes de acção, revistas de super-heróis).

Local da acção: Apartamento (3 quartos, 2 casas-de-banho, cozinha, sala de estar, e pequeno terraço)

Os acontecimentos que são aqui relatados ocorrem a partir do dia em que a televisão é instalada em casa. Por mera coincidência acaba por acontecer ao mesmo tempo que a chegada do sistema de cinema com cinco colunas (duas delas sem fios), e da instalação da televisão por cabo. No ano em que tudo isto acontece, a família Fonseca Almeida estava num dilema porque caso fossem de férias, ficariam endividados até aos olhos, e, visto já estar em atraso relativamente aos pagamentos do apartamento, dos estudos da Joana, do carro para a Maria da Saúde (que não podia de maneira nenhuma ficar atrás das amigas e tinha de ter, pelo menos, um “bom” carrinho), talvez o melhor fosse ficar e m casa este verão. Os relatos são feitos directamente na primeira, não pessoa mas sim, pela própria televisão, sendo este modelo tão avançado que até permite olhar nos olhos de quem está a ver televisão, esboçar um retrato psicológico e enviar o resultado directamente por e-mail ás estações de comunicação de Portugal.

Dia 1 – 17h 30

Desembalagem: Fui desembalada e instalada com a ajuda do técnico de televisão por cabo que fartou-se de mandar vir porque não era pago para estar a fazer aquilo. O SR. Fonseca Almeida – pai, que não percebia nada de instalação, programação, acho que tinha o direito de exigir ao referido técnico que fizesse também o obséquio de montar também o sistema de som, ao qual este respondeu: “era só o que faltava”. Após alguma discussão, acabaram por chegar a um acordo em que o Sr. Fonseca Almeida –pai, pagava algo mais ao técnico que, por sua vez, instalava a dita linha pelos vários televisores da cozinha e sala, assim como a montagem do sistema de cinema em casa, se bem que após o seu horário de trabalho.

21h30
Termo das instalações e programações. Início do usufruto do equipamento adquirido, em detrimento dos quinze dias de férias num T2 no Algarve, partilhado por 2 famílias, por motivos financeiros, ou seja um número mínimo de 7 pessoas.

22h30

Interrupção do sistema de cinema em casa devido ao desagrado dos vizinhos em relação ao volume do mesmo. O Sr. Fonseca Almeida comenta que é uma pena possuir um aparelho de tão grande qualidade, que a tantos sacrifícios obrigou, se não pode utilizá-lo no seu expoente. A Sra. Fonseca Almeida parece aliviada pelo facto de se baixar o volume. A Joana tenta ajudar a controlar a distribuição do som pelas várias colunas, ajuda essa que é imediatamente impedida pelo pai. “Ninguém mexe!” é a ordem do dia. Passam a utilizar então o sistema de modo que se ouve o som das colunas frontais muito baixo para não incomodar os vizinhos. Em contrapartida o volume das colunas traseiras (sem fios) está anulado. O programa da noite é discutir entre ver a telenovela portuguesa de um canal, versus a telenovela brasileira de outro. O Luís tenta dar opinião mas é enviado para o seu quarto automaticamente. Desgostoso começa a chorar, o que atrai mais uma vez os vizinhos para uma nova discussão.

Dia 2

Novela da manhã num dos canais abertos, interrupção mal recebida pelo noticiário, novela da tarde noutro canal aberto, novelas da noite, nova discussão, desta vez de pouca dura porque o reality show reúne a família toda, incluindo o Luís. Após o final do mesmo, visita cordial dos vizinhos para comentar a maravilha de programa. Crítica à televisão por cabo que só possui um canal brasileiro de qualidade, porque todos os outros são estrangeiros, e outros sem alguma importância, tais como os de história e tecnologia, a bolsa, etc… O Luís gosta dos canais de desenhos animados e de animais. Reprimenda ao Luís por ser intrometido e só gostar de porcaria. O Luís é enviado para o seu quarto a chorar. Chegam mais vizinhos por causa do barulho.

Dia 3

Novela da manhã num dos canais abertos, noticiário, novela da tarde noutro canal aberto, novelas da noite, novela da Seia, reality show, resumo das novelas. O Luís vê os desenhos animados na cozinha onde ninguém o interrompe.

Dia 4

Novela da manhã num dos canais abertos, noticiário, novela da tarde noutro canal aberto, novelas da noite. Reality show. Repetição da Novela do dia anterior.

Dia 5

Dia - Novelas do fim de semana.
Noite - Futebol . Discussão por causa da visualização do compacto semanal da novela versus o desafio de futebol com o sistema de som ligado versus desligado. O Luís é expulso da cozinha pela mãe e pela irmã. Chora compulsivamente porque não viu o elefante atravessar o rio com o seu filhote ás costas, mas desta vez o choro não incomoda os vizinhos porque está abafado pelo barulho das colunas de surround aquando da transmissão do jogo. Os vizinhos aparecem sim, mas desta vez ninguém discute porque trouxeram cerveja e estão todos sentados no sofá a ver o jogo.

(continua…)

Realidades Alternativas - Parte IV - Busca Buscarelli!

“Que ninguém fale mal do Buscarelli, o homem não tem culpa de nada! É tudo inveja dos outros clubes. Quando tiveram oportunidade de contratá-lo não quiseram e agora que é outra vez o goleador do campeonato e que a nossa equipa vai mais um ano em primeiro lugar, está tudo a querer atacá-lo!”. Deus dá nozes a quem tem dentes. O Sr. Flores só queria um autógrafo para acrescentar aos outros da sua colecção. Teria sido o mais valioso de todos, caso o tivesse conseguido. Em vez disso conseguiu partir três dentes e dois dedos da mão direita, sem contar com os demais mal tratos da equipa de segurança e da desmedida intervenção da polícia. Sim porque os três dentes, esses, foram o resultado do encontro com a claque, já os dedos vieram directamente da arrogância do grande Buscarelli, avançado dos avançados. Magnata Flores não tinha nada de magnata. Tinha antes uma mulher e um filho de quem gostava mesmo muito, e também uma outra paixão, por demais avassaladora, pelo seu clube e pelo seu segundo filho, que tinha visto crescer em todos os jornais e seguido os caminhos agora na sua equipa de coração, o mestre, o Busca como o chamavam os adeptos com carinho. Tinha planeado o fim-de-semana com cuidado para acompanhar a equipa ao estrangeiro, vê-la jogar, vê-la ganhar, conseguir o tão desejado autografo, e nada o faria mudar de ideias. Nem mesmo o facto do bilhete de avião, mais o alojamento e a entrada para o estádio, tudo isto ser dispendioso ao ponto de custar-lhe um mês e meio de trabalho, Magnata Flores era um homem simples, e nem mesmo se seu filho festejava o seu sétimo aniversário nesse dia, até porque a recordação do autógrafo depois da vitória no jogo de qualificação para as meias finais da Europa contra aquele clube inglês tão maior, juntamente com o bilhete que provava a sua presença no evento, iriam revelar-se algo de um valor incalculável.
A equipa acabou por não ganhar e o Sr. Flores não conseguiu o tal autógrafo à saída do estádio. Decidiu então tentar a sua pouca sorte no regresso a Portugal, junto à área da chegada do aeroporto. Estava esta apinhada de gente que aguardava a equipa. Porque também chegara de avião, conseguiu um lugar privilegiado perto da porta de desembarque. A zona não estava porém despovoada. A claque que tinha igualmente acompanhado a equipa encontrava-se no mesmo local, algo nervosa, reclamando pelo jogo, e pelo facto de se estarem a acumular pessoas nesse mesmo território que deveria ser apenas o deles. A tensão foi-se acumulando até que atingiu o seu ponto mais crítico quando o grupo de seguranças apareceu, seguido da direcção do clube, e finalmente a equipa. Empurrões e apupos, grupos enfurecidos devido ao resultado, outros no entanto de apoio incondicional à equipa, não temos medo de ninguém, etc e tal… Foi a esteas pessoas que o Sr. Flores se foi infiltrando. Quando Buscarelli, o grande, o magnífico, apareceu, a tensão subiu drasticamente, tanto nas críticas como no apoio. Este vinha acompanhado da sua comitiva de segurança privada, composta pomposamente por gigantes vestidos de preto e de ar muito ameaçador. O Sr. Flores engoliu em seco antes de decidir investir nessa direcção. Sentia-se algo seguro que o Busca não ia negar uma assinatura, sobretudo perante o grupo que estava ali para o apoiar. O que sucedeu seguidamente foi muito rápido. Flores alcança Buscarelli com papel e caneta na mão. Buscarelli tenta afastá-lo com um empurrão, Flores cai e o craque, com alguma maldade, pisa-o de forma destemida. Um segundo pontapé poderia ter lhe custado um traumatismo na face, não fosse um dos gigantes intrometer-se entre os dois, enquanto que outra torre de músculos o agarrava pelo colarinho, sem a mínima preocupação em fazê-lo com algum cuidado. Flores acabou por conseguir escapulir-se daquela situação toda deixando apenas o seu casaco nas mãos do segurança, já esquecido estava opapel e a caneta, aquilo que tivesse anteriormente nas mãos. Refugiar-se junto da claque foi pior ainda. Tomado como inimigo, foi mais uma vez agredido, desta vez atirado e pontapeado. A sua única defesa foi manter-se no chão e proteger a maior área possível do seu corpo. Agora fora a boca atingida, e partido o telemóvel. Finalmente a polícia conseguiu agarrá-lo e levá-lo para a sala de emergência do aeroporto. Foi acusado tentativa de agressão. Voltou para casa e meteu baixa por uns dias. Enfrentou a mulher e o filho como pôde. Evitou o assunto e os amigos.
Para Buscarelli e o resto da comitiva, foi mais um parvo que tentou atravessar-se no caminho. O problema foi resolvido em 15 segundos. E a história acabou por aí. Uma pessoa não são pessoas e as pessoas são o lucro desta empresa. Sobretudo os parvos.
“Que ninguém fale mal do Buscarelli!”

Realidades Alternativas - Parte III - Lusitana Paixão...

“Só mesmo em Portugal” – dizia uma senhora de idade num canal televisivo daqueles de relevo pela tendência em inflamar as notícias. Desta vez ela própria já vinha inflamada, a notícia, não a senhora de idade. Espalhou-se logo. Foi o caos nas confrarias do sistema, nos restaurantes, cafés, salões de beleza, parques, nas salas de chuto, nos mercados tradicionais. "Só assim é que o povo dança" - diziam os mais sábios. - "Se não forem em situações declaradamente conflituosas, o Zé povinho não existe nunca". Quanto a esse, o próprio Zé povinho, esse tinha as suas opiniões - “ele já estava farto de ouvir sempre a mesma coisa”, “os jornalistas é que têm culpa, sempre com a mesma conversa”, “o ministro disse o que nunca ninguém pode dizer, a não serem os críticos sem moral”, “está desgraçado, ele e todo o partido”, e afins... A oposição, como era de esperar, não tardou a fazer-se ouvir, desdobrando as suas tão habituais críticas a todos e quaisquer movimentos dos adversários. “É uma vergonha para o nosso país” “Não é mais do que a instabilidade que se faz sentir no seu grupo partidário…” e outras idiotices ás quais já nos habituámos. São sempre os comentários e as opiniões de tudo e todos, aquilo que enche de sentido a razão dos média, quanto à sua existência. É a voz maior, a alma das nossas gentes, representada á lupa pelos proprietários das redes informativas. Tudo isto faz dos meios de comunicação, aquilo que gostamos de chamar de “meios de comunicação”, ou talvez devêssemos chama-los de “medos de comunicação”, ou então simplesmente “merdas de comunicação”. No fundo, todas essas instituições não passam de um aparelho destinado a reproduzir as nossas bem aventuradas vozes. Se são tendenciosos, é porque as nossas referidas vozes entoam notas de uma música que provoca um padrão nas espinhas dos jornalistas, padrão esse que, por sua vez, deve corresponder, já por antecipação, àquilo que lhes é obrigado a transmitir, tudo em prol da sua afortunada continuidade na empresa em que trabalham. O azul é azul se der jeito hoje, porque amanhã é amarelo de certeza. Neste caso os jornais iriam portanto elaborar um relatório detalhado de todas as circunstâncias que fizeram chegarmos a este ponto. Isto é enquanto formos azul. Quando passarmos a amarelo, aí o caso será detalhado ao ponto de chegar a parecer uma dádiva dos céus. Por agora chamemos-lhe simplesmente de escândalo. A ver vamos… Voltando ao nosso caso, é mesmo caso para dizer que, se a pergunta foi simples, a resposta mais simples ainda foi. É preciso também acrescentar que o próprio ser humano também tem os seus limites, e há sempre dois lados da balança. O lado acusado e o lado do desgraçado, por mais poderoso que o segundo tenha sido. Também é verdade que se existem baixas e despedimentos partindo do topo, também se deve responsabilizar a base do triângulo, essa completamente instável. Curta e grossa foi então a questão do ensanduichado jornalista: “Sr Ministro, qual a sua posição sobre a crise de despedimentos que enfrentamos?” – grossa mas mais grosseira foi a resposta do ministro humano e francamente desamparado – “Estou-me a cagar para vocês todos. Deixem-me em paz”.
E agora silêncio, que se vai cantar o Fado…

Antes público que familiar privado

Olha ali o botão… só preciso de carregar e a transferência está feita, o meu dia de trabalho tem a missão cumprida. Ainda é de manhã, e a minha reputação de óptimo empregado para o resto da semana apenas depende desta transferência, juntamente com uma chamada, uma visitinha ao patrão e está tudo bem. É isso mesmo. Só tenho de picar o este ponto e pronto. Até me sentia melhor e tudo… Então porque raio é que não o faço? Porque será que este tempo todo só me apetece fazer exactamente o oposto? Ser filho do presidente provoca assim tanta letargia? Não precisar disto para nada é assim tão cansativo que nem completar esta simples tarefa me dá animo? Será que devo ir de férias de novo? Para onde desta vez? Seria a terceira este ano… Se calhar vou é vaguear pela net á procura de qualquer coisa de interessante… Olha vou tomar mais um cafezinho e depois volto. Meto-me na net e fico por aqui no modo cruzeiro. Se calhar ligo ao Paulo para saber o que anda fazendo por aí. Podia vir aqui ter comigo e falávamos um bocado. Gostava de ir a qualquer lado esta noite e assim combinava com ele. Amanhã é sexta, tenho de cá vir mas se dormir menos não faz mal, afinal sexta é o último dia da semana e posso descansar melhor depois. Deixo as coisas para segunda então… É isso mesmo. Fica para segunda a transferência… Ou pra amanhã…. Depois vê-se...

Realidades Alternativas - Parte II - Um dia a casa veio abaixo

Um dia igual a tantos outros, Portugal estava acordado. O céu aparecia desimpedido de nuvens, enquanto o sol surgia em todo o seu esplendor, no altar dos céus. A manhã anunciava-se maravilhosa, o calor fazendo-se sentir bem cedo. No entanto algo estava a mudar, ou melhor, o espaço e o tempo tinham literalmente tomado um rumo bem diferente do habitual. Nos cafés o som dos rádios, não se fazia sentir, nem as televisões estavam ligadas. Os quiosques estavam vazios de gente, com os jornais intocados nas prateleiras. Era estranho tal indício mas não parecia que alguém tivesse dado ainda a importância necessária a tal facto. Aquele dia estava mais silencioso do que o normal. Aos poucos sentia-se como se o silêncio se tornasse num zumbido ao qual não se estava acostumado. Caminhando em direcção às zonas de maior afluência de trânsito, as pessoas iam começando a dar início aos percursos que as levavam aos seus locais de trabalho, escolas, e muitos outros destinos que fazem esta cidade colorir-se nos tons mais variados, com gente a acordar, a chegar, a agradecer, a pedir informações. Gente com pastas e malas, mochilas e mapas, sorridentes e angustiadas, rostos felizes, convencidos, conformados com o seu destino, talvez eu, talvez tu, todos nós, juntos ou enquadrados numa multidão solitária e indiferente. Algo estava diferente, no entanto. Os cartazes pareciam menos apelativos. Já não brilhavam as estrelas dos reality shows. Os títulos dos jornais não pareciam atrair as atenções, com os seus anúncios tendenciosos e as suas exclamações sem conteúdo algum. As revistas cor-de-rosa não rodavam de mão em mão nos autocarros, nem nas salas de espera. Os painéis publicitários não eram comentados, nem para o mal, nem para o bem. Com o passar dos dias, tal silêncio começou a sentir-se com mais força. Não tardou, muito para que as estações televisivas começassem a carregar o peso da indiferença que se estava a sentir a nível das audiências. Os programas não conseguiam transmitir interesse, os números eram irrisórios, a publicidade não parava mais ninguém. Aconteceu de um dia para o outro mas durou o suficiente para extinguir tudo aquilo que já não “interessava”. Os chamados programas de entretenimento desapareceram, tudo aquilo que tinha o carimbo de cor-de-rosa viu dias negros e foi-se. Começou com os patrocinadores a recusarem perder dinheiro, e de repente as pessoas que já não “interessavam” passaram a ser totalmente ignoradas. Houve despedimentos sem aviso. Os novos pobres tiveram de passar a explorar qualquer capacidade que não possuíam para poder sobreviver, sentindo-se por isso humilhados e derrotados. O corpo era o que mais vendia, desta vez direcionado para as sombrias ruas ou nos cantos mais escuros das cidades, ao invés das capas das revistas. As empresas discográficas deixaram de produzir aquilo que tanto tempo levaram a publicitar. Os antigos sucessos eram agora faces de uma moeda desvalorizada, que as mesmas editoras tentavam agora encobrir, algo que nunca devia ter acontecido, um erro lançar esta gente sem inteligência, pedimos desculpa mas nunca mais torna a acontecer. O mesmo se passava com os locais que costumavam estar na chamada berra. As estações de rádio tiveram o mesmo tratamento. Tudo aquilo que não passava de meras imitações, clichés ou repetições dos êxitos de algum outro tempo, tudo isto era simplesmente excluído do modo de vida das pessoas. As emissões passaram a ser suprimidas, eliminadas, e gente que se achava no auge da sua carreira esquecida para nunca mais voltar. Durante certo tempo o pânico foi em grande escala para tudo o que vivia da fantasia simplista das massas. Não se conseguia compreender como era possível algo do género ter acontecido. Teria o povo enlouquecido? Porque razão teriam estas as pessoas, decidido ignorar tudo aquilo que as tinha tornado felizes até então? O pior é que por mais que se tentasse reanimar a velha chama da ingenuidade popular, parecia antes que, do nada, as pessoas tinham simplesmente decidido não querer mais. Não tinha havido nenhuma manifestação, nenhum panfleto a passar pelas pessoas, nada. Tudo aquilo que provocara uma satisfação a curto prazo tinha sido simplesmente extinguido da alma das gentes, em prol de um prazer a longo prazo, mais esclarecedor, uma satisfação que vinha sim do enriquecimento da mente, um prazer vindo da sapiência.

Os bois em frente dos carros.

O que faz sentido final? Qual a lógica de ter uma linha que nos oriente, se, mais tarde, não se consegue chegar a bom porto? O que interessa afinal de contas é sim a viagem, mas sobretudo a chegada. Se não se conseguir nada de satisfatório quando se chega ao fim, então de que serve viajar? A qualidade é melhor que a quantidade? Será mesmo? Se não tentamos muitas vezes como seremos então capazes de produzir algo satisfatório? E as entrelinhas? Não são elas mais visíveis e esclarecedoras do que o próprio conteúdo da mensagem? Porque não estamos então todos mais cientes da realidade e da veracidade relatibvamente ao mundo que nos rodeia? Simplesmente porque ler nas entrelinhas cansa muito mais, produzir muita quantidade para se conseguir algo que possua algum significado dá muito mais trabalho, e porque viajar somente pela viagem, é como concorrer apenas para participar. É agir sem o peso da responsabilidade. Ser maior é efectivamente um desafio que exige dedicar e abdicar, e aquilo que é duro também se revela, na maioria dos casos, assustador e trabalhoso. Por isso consideramos a qualidade como sendo bem melhor do que a quantidade, e a viagem melhor do que o destino. Os bois em frente dos carros são muito mais fáceis de concretizar do que substituí-los por carros a sério e com qualidade. Mas esse sim seria o verdadeiro destino de uma viagem...

Fogo Lento

É como se a minha vida estivesse prestes a florescer de novo. Sinto uma alegria tal que já doi a partida. Falta tanto tempo, mas a vida é mesmo assim. A minha é mais penosa do que muitas outras. Acredito que somente amo aquilo que não posso ter. Recuso absolutamente o amor que faz companhia. Necessito do seu ser como de sede se tratasse. Bebo as suas palavras, estagno perante o seu sorriso. É tão cruel mas representa tudo aquilo a que alguns chamaram um dia de cegueira. Só amo o obstáculo. Se pudesse dava-lhe tudo. o impossível era para mim algo de tão fácil que haveria de me imaginar como um herói, ou até mesmo um deus.
Faria tudo por ela. tudo.Tentaria não ser pesado, dava-lhe todo o seu espaço, mas faria tudo aquilo que ela desejasse. Hoje tenho uma estupida esperança que me venha visitar, contra todas as tendências. mas é só uma probabilidade ínfima, ela cometer tal acto. Acho que se isso me fosse acontecer, então desmaiava de prazer. Ou então corava e sorria, e mais ninguém me conseguiria tirar o sorriso da cara. Tenho de pensar que ela vai-se embora, tenho de me mentalizar para isso senão tou tramado. Vai doer de novo. Desta vez não sei se a minha alma vai aguentar outro desamor igual.
Nos entretantos vou gerindo este misto de angustia e de absoluta felicidade da melhor forma possível. A tristeza no nirvana. Tem piada. há algum tempo aconselhei uma pessoa a viver cada sensação como se fosse a última, fosse ela boa ou má. Pedi-lhe para recebê-la e digerí-la até ao último suspiro. Curtir a tristeza é algo de delicioso dizia eu. A verdade é que não é. É horrível sentir uma pequena morte dentro de nós. Uma morte que nem sequer aconteceu. É a penultima amêndoa que é tão amarga que faz esquecer todas as anteriores, e mesmo que a última seja a mais deliciosa, está sempre o sabor da sua irmã agressiva. Como uma má impressão leva tanto tempo a sair da alma das pessoas, por mais que se tente, mais tarde, compensar com tudo aquilo que se tem de bom. É uma picada no nosso íntimo que provoca uma ferida dilacerante. Atinge o nosso orgulho, ata nos a uma árvore e deixa-nos espernear de frustração. No entanto é tão belo que a própria dor se transforma numa cor garrida e nos dá ânimo para tentarmos outra vez até doer de novo, e de novo, e de novo. Só mais uma vez por favor...

Realidades Alternativas - Parte I - Escrita Aguda - Conheça o Foster

Foster ampara a queda equilibrando a própria forma de cair. Encosta-se como pode á parede e tenta perceber onde fora atingido. Na perna direita, avista o sangue começando a manchar cada vez mais as suas calças. Tenta em vão estancar a ferida com as suas próprias mãos, mas quanto mais tenta, mais sangue se esvai. Procura em seu redor algo que lhe resolva o problema. Acaba por avistar uma toalha, sobre a mesa da cozinha. Torna a observar o local onde a bala penetrara e compreende o que se passa. A artéria foi atingida e não pode perder muito tempo. Talvez seja melhor telefonar a alguém. Ou gritar por ajuda. Esquecendo a toalha por momentos, esforça-se por chegar ao computador. O esforço e sobretudo a dor daí resultante fá-lo pensar em apressar-se. O sangue da sua perna jorra, a dor torna-se mais aguda, a força começa a escapar-lhe. Apesar do computador encontrar-se ali tão perto, junto aos seus pés, o pânico começa a apoderar-se dele. Volta a pensar na toalha e no computador. Recorda numa tentativa de chegar a uma solução, aquilo que acabou de acontecer-lhe, enquanto sente vai ficar sem forças. Tenta concentrar a sua mente noutra coisa qualquer, numa última tentativa de reorganizar os pensamentos. Por momentos consegue pensar nas pessoas, nos amigos, no trabalho, na família que nunca quis e noutra que jamais teve. Tenta lembrar-se de como tudo aconteceu, mas já não consegue. Esforça-se mais. Mais sangue. A dor já não interessa mais. Talvez se pudesse mudar o curso da história em seu favor, seria possível sobreviver aquilo que ele próprio criou. Tinha de tomar uma decisão arriscada. Iria parar e reflectir de uma vez por todas em como faria para sair daquele marasmo, em detrimento do tempo que não lhe restava em quantidade segura para manter a cabeça fria. Optou por esquecer-se da dor, do sangue, do disparo, dos amigos, do telemóvel e esvaziou a mente, numa aproximação á serenidade mental. Fechou o olhos respirou fundo - Calma – Respira fundo e tem calma – Esqueceu por momentos a sua própria sobrevivência, procurando no fundo da sua alma o silêncio e o vazio. Falou para Deus e pediu-lhe calma, uma mente astuta e eficiente. Nunca o tinha feito antes, mas pareceu-lhe que não tinha tentado tudo ainda, nem que tinha nada a perder. São nestas alturas que rezamos para que nos acudam, venha a força que vier, seja ela divina ou não, do céu, do inferno, do vizinho do lado, pouco interessa a origem. Fazemos votos de redenção e a fé é maior que nunca. Mais tarde iremos regressar aos poucos á nossa condição inicial, mas para já o que interessa é a fé do momento, conselheira, auxiliar, poder esse que vem de dentro de nós e cuja finalidade é reunir todas as nossas ajudas, aquelas do presente, passado e futuro, e conjugá-las num único microsegundo, um instante que terá de ser suficiente para nos pôr a caminhar outra vez. Não se sabe quanto tempo manteve os olhos fechados mas precisava de controlar todos os seus impulsos, esses movimentos primitivos que fazem dele um ser vivo, e substituí-los por aqueles que são dignos de um homem a sério. Foster parou como nunca tinha o seu corpo parado antes. Preferiu deixar o sangue esvair-se, em troca de um estado de alma sereno e eficaz, que lhe permitisse resolver a sua situação. O físico contra o mental. A dor contra a loucura, com uma pitada inverosímil de fé e de qualquer episódio da Twilight Zone. A seu tempo lá iremos porque se estás assim Foster, então a culpa é tua…